O SISTEMA CONSTITUCIONAL BRASILEIRO DE DISPENSA POR INICIATIVA DO EMPREGADOR NO CONTRATO DE TRABALHO

 

 

 

ALEXANDRA VIEIRA LAZZARIN

Advogada. Bacharel em Direito e Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS. Integrante do Grupo de Pesquisa Direito e Fraternidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS. Membro do Comitê de Ética em Pesquisa no Sistema de Saúde Mãe de Deus-CEP/SSMD. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas CNPQ/PUCRS Estado, Processo e Sindicalismo.

 

HELENA KUGEL LAZZARIN

Advogada. Bacharel em Direito e Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS. Mestranda em Direito na Universidade do Vale do Rio dos Sinos-UNISINOS. Integrante do Núcleo de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Rio dos Sinos-UNISINOS. Integrante do Grupo de Pesquisa Direito e Fraternidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul-UFRGS. Membro do Comitê de Ética em Pesquisa no Sistema de Saúde Mãe de Deus-CEP/SSMD. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisas CNPQ/PUCRS Estado, Processo e Sindicalismo

 

 

 

Resumo: O presente artigo tem como objetivo a análise da proteção constitucional contra a dispensa arbitrária do trabalhador no Brasil. Em um primeiro momento, examina a evolução dos sistemas adotados para tutelar a relação de emprego, discorrendo pela estabilidade decenal e pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), até chegar ao modelo proposto pela Constituição de 1988. Em um segundo momento, expõe os debates causados pela Convenção nº 158 da OIT, que versa sobre o término da relação de emprego, examina seu histórico de ratificação e denúncia pelo Brasil, e, por fim, pondera sua compatibilidade (formal e material) com a Constituição brasileira.

 

Palavras-Chave: Proteção; Dispensa sem Justa Causa; Constitucionalidade; Convenção nº 158 da OIT.  

 

 

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. Evolução Legal e Previsão Constitucional; 1.1 Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS; 1.2 Proteção na Constituição Federal de 1988; 1.3 Dispensa Arbitrária: conceito; 1.4 Aplicabilidade da Norma Constitucional; 2. A Convenção nº 158 da OIT;   2.1 Constitucionalidade da Convenção nº 158 da OIT; 2.1.1 Constitucionalidade Formal; 2.1.2 Constitucionalidade Material; Conclusão; Referências.

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

O presente trabalho tem como objetivo analisar a proteção constitucional contra a dispensa arbitrária do trabalhador no Brasil. Para isso, primeiramente, far-se-á uma análise da evolução dos sistemas adotados para tutelar a relação de emprego, discorrendo pela estabilidade decenal e pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), até chegar ao modelo proposto pela Constituição de 1988. Em um segundo momento, será verificada a recepção da Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho pelo ordenamento jurídico brasileiro, assim como a sua constitucionalidade formal e material.

 

A importância do tema se dá na medida em que a Constituição Federal proíbe a dispensa arbitrária, mas condiciona à lei complementar a sua regulamentação, enquanto Convenção nº 158 da OIT, que também veda a dispensa arbitrária, depende de Ação Direta de Inconstitucionalidade para que passe a surtir seus efeitos na legislação brasileira. O trabalhador brasileiro permanece, assim, sem a devida proteção à dispensa arbitrária.

 

 

1. EVOLUÇÃO LEGAL E PREVISÃO CONSTITUCIONAL

 

O Direito do Trabalho objetiva a permanência do vínculo empregatício, com a integração do trabalhador na estrutura e dinâmica empresariais. Esta é a ideia que traz o Princípio da Continuidade da Relação de Emprego, que propõe, inclusive, como regra geral o contrato de trabalho por tempo indeterminado, a fim de concretizar o direcionamento da continuidade empregatícia.[1]

 

A preocupação com a permanência do emprego originou o instituto da estabilidade, que começou a ser delineado no ano de 1923, quando a Lei  Eloy Chaves[2] criou as caixas de aposentadoria e pensão dos ferroviários, estabelecendo que esses trabalhadores passassem a ser considerados estáveis após dez anos de serviço. Em 1935, o referido direito foi estendido a todos os empregados, pela Lei nº 62, de 05 de junho de 1935.[3] Vale referir que, nesta Lei, restaram excluídos da garantia os trabalhadores domésticos e rurais.

 

A Constituição Federal de 1937[4] foi a primeira a mencionar a estabilidade no emprego, mas reconhecia a indenização:

 

Art. 137. A legislação do trabalho observará, além de outros, os seguintes preceitos: 

f) nas emprezas de trabalho continuo, a cessação das relações de trabalho, a que o trabalhador não haja dado motivo, e quando a lei não lhe garanta a estabilidade no emprego, crea-lhe o direito a uma indemnização proporcional aos annos de serviço.

 

Na Constituição Federal de 1946,[5] a estabilidade foi alçada à hierarquia constitucional entre os direitos dos trabalhadores, conforme o artigo 157, inciso XII:

 

Art. 157. A legislação do trabalho e a da previdência social obedecerão aos seguintes preceitos, além de outros que visem à melhoria da condição dos trabalhadores:

XII - estabilidade, na emprêsa ou na exploração rural, e indenização ao trabalhador despedido, nos casos e nas condições que a lei estatuir.

           

É válido lembrar o contexto histórico de tais normas: em 1935, quando foi generalizado o benefício, a estabilidade não representava obstáculo aos empregadores, pois o mercado de trabalho se encontrava estagnado, sem rotatividade da mão de obra. No entanto, a partir dos anos 50, com um novo impulso de industrialização, a estabilidade transformou-se em um óbice a ser removido, e passou a ser tratada como uma limitação inaceitável à livre iniciativa empresária.[6]

 

Os principais fatores negativos apresentados pelos empregadores eram: a dificuldade de comprovar a ocorrência de falta grave perante a Justiça; os empregados estáveis eram menos produtivos e mais indisciplinados; o valor das indenizações que eram pagas, em caso de dispensa sem justa causa, representava um ônus muito grande para as empresas; e, por fim, dentre as hipóteses legais autorizadas da dispensa do trabalhador estável, não se incluíam os motivos de ordem econômica, financeira, estrutural ou tecnológica que afetassem verdadeiramente a vida empresarial, ainda que não chegassem a configurar força maior, no sentido estrito previsto pela CLT.[7]

 

Em posição antagônica, argumentava-se que, em relação à extinção do instituto, deveriam ser buscadas soluções ao invés de, em nome de uma facilidade ao empregador, destruir a garantia máxima do empregado.[8] Tal discussão acabou sendo superada pela instituição do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS, através da Lei nº 5.107, de 1966,[9] sistema que foi, aos poucos, substituindo a estabilidade decenal.

 

1.1 Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS

 

O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS (Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966),[10] criou um sistema de poupança a longo prazo para os trabalhadores, como alternativa ao sistema da estabilidade, tornando obrigatório, para o empregador, efetuar depósitos mensais em contas vinculadas para cada um de seus empregados, correspondentes a 8% (oito por cento) do valor da remuneração paga no mês anterior. De acordo com a Lei:

 

Art. 6º Ocorrendo rescisão do contrato de trabalho, por parte da emprêsa, sem justa causa, ficará esta obrigada a depositar, na data da dispensa, a favor do empregado, importância igual a 10% (dez por cento) dos valôres do depósito, da correção monetária e dos juros capitalizados na sua cota vinculada, correspondentes ao período em que o empregado trabalhou na emprêsa.

 

Na época, o governo também apontou como causa para a extinção da estabilidade o fato de que, segundo uma pesquisa do Ministério do Trabalho, apenas 15% (quinze por cento) dos empregados haviam alcançado a estabilidade, número que caía para 1% (um por cento) quando se tratava de empresas novas, com até quinze anos de existência. Deste modo, a estabilidade, ao invés de representar uma proteção para o empregado, acabava tendo o efeito contrário, uma vez que as empresas sistematicamente dispensavam os seus funcionários, a fim de evitar que completassem o período de dez anos e alcançassem, assim, a estabilidade.[11]

 

Nesse contexto, era extremamente comum a prática da chamada dispensa obstativa: muitas empresas, a fim de evitar que seus empregados se tornassem estáveis, dispensavam-os, antes que completassem o período de dez anos. Esse fenômeno tornou-se tão comum que o Tribunal Superior do Trabalho editou, em 1970, o Enunciado nº 26,[12] que afirma: “Presume-se obstativa à estabilidade a despedida, sem justo motivo, do empregado que alcançar nove anos de serviço na empresa” (cancelado em 2003).

 

O FGTS foi incluído na Constituição Federal de 1967,[13] através da Emenda Constitucional nº 1 de 1969,[14] como opcional, válido até a Constituição Federal de 1988,[15] quando passou a ser obrigatório. Durante este período, coexistiram os dois sistemas, estabilidade e FGTS, de modo que a opção do empregado pelo regime do Fundo implicava renúncia ao direito de alcançar estabilidade após dez anos de serviços prestados na empresa.

 

Havia a expectativa de que o FGTS prolongasse a duração das relações de emprego, uma vez que o empregador não precisaria mais demitir empregados temendo que eles alcançassem a estabilidade. No entanto, as estatísticas refutaram essa ideia, e o que se mostrou foi um grande aumento da rotatividade da mão de obra no mercado de trabalho. Apenas na cidade de São Paulo, dados do DIEESE mostraram que no período de 1964 a 1971 as dispensas no setor industrial passaram de 74,4% para 179,6% ao ano, mais que triplicaram no setor de transportes (83,2% para 311,8%) e comunicações (63,6% para 361,0%), duplicaram no setor de bancos (57,0% para 207,0%) e de comércio (80,0% para 212,5%).[16]

 

Vale ressaltar que o valor dos depósitos, acrescido da multa de 10%, era inferior ao valor da indenização por antiguidade prevista na CLT, embora constasse na exposição de motivos da Lei do FGTS que seriam iguais ou até mesmo superiores. Essa equivalência de valores foi enunciada também na Constituição de 1967, com a EC nº 1 de 1969:

 

Art. 165. A Constituição assegura aos trabalhadores os seguintes direitos, além de outros que, nos têrmos da lei, visem à melhoria de sua condição social:

XIII - estabilidade, com indenização ao trabalhador despedido ou fundo de garantia equivalente;

 

No entanto, a diferença era muito questionada. A discussão originou, inclusive, a Súmula nº 98, do TST,[17] que ainda está em vigor:

 

Súmula nº 98 do TST (2005)

I - A equivalência entre os regimes do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e da estabilidade prevista na CLT é meramente jurídica e não econômica, sendo indevidos valores a título de reposição de diferenças. (ex-Súmula nº 98 - RA 57/1980, DJ 06.06.1980)

II - A estabilidade contratual ou a derivada de regulamento de empresa são compatíveis com o regime do FGTS. Diversamente ocorre com a estabilidade legal (decenal, art. 492 da CLT), que é renunciada com a opção pelo FGTS. (ex-OJ nº 299 da SBDI-1 - DJ 11.08.2003)

 

Desse modo, o empregador poderia dispensar livremente, tendo como única obrigação autorizar o levantamento dos depósitos e pagar a multa prevista em lei.

 

1.2 Proteção na Constituição Federal de 1988

 

A proteção à relação de emprego contra a dispensa é constituída de regras que limitam o direito de cessar o contrato de trabalho por ato unilateral do empregador, bem como as consequências da dispensa, tenha sido essa realizada de modo legal ou ilegal. A Constituição de 1988 estabeleceu uma nova etapa da proteção contra a dispensa no Brasil, estipulando regras de proteção em sentido amplo e em sentido estrito.

 

A proteção em sentido amplo se dá, basicamente, pela concessão de aviso prévio e pelo pagamento de indenizações. Tais institutos têm sido utilizados como regra geral no término dos contratos de trabalho por tempo indeterminado.

A proteção em sentido estrito, por sua vez, se dá por esta nova concepção de garantia do emprego, ou seja, pela previsão do FGTS como um direito independente. Assim, na nova ordem constitucional, coexistem ambos os direitos, representando o FGTS uma espécie de “seguro” do empregado, pelo tempo de trabalho.

 

Vale lembrar que a garantia do tempo de serviço não é sucedânea da garantia de relação de emprego prevista no artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal, nem objetiva facilitar a despedida. Seu objetivo e natureza não podem ser mais os de proteger o empregado despedido dos malefícios do desemprego, mas sim uma espécie de patrimônio individual do trabalhador, do qual ele pode dispor em várias hipóteses.[18]

 

Expressa o artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal:[19]

 

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;

 

Até o momento, essa lei complementar inexiste. No entanto, ainda sobre a mesma temática, dispõe o artigo 10, inciso I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT:[20]

 

Art. 10. Até que seja promulgada a lei complementar a que se refere o art. 7º, I, da Constituição:

I - fica limitada a proteção nele referida ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6º, "caput" e § 1º, da Lei nº 5.107, de 13 de setembro de 1966;

 

O referido dispositivo do ADCT tem o intuito de regular a situação dos trabalhadores dispensados até que haja edição da lei complementar – como uma compensação. Vale dizer, enquanto não houver a edição da lei complementar, a multa referente ao FGTS será majorada em quatro vezes, passando a ser, assim, de 40%, em prol do trabalhador.

 

Ainda, são consideradas proteções contra a dispensa em sentido estrito:

 

a)  do empregado candidato a cargo de direção sindical, desde a sua candidatura e até um ano após o final do mandato, se ele for eleito, salvo se cometer falta grave, nos termos da lei (artigo 8º, inciso VIII);

 

b)  do empregado eleito para cargo de direção de comissões internas de prevenção de acidentes (CIPA), desde o registro de sua candidatura até um ano após o final de seu mandato (artigo 10, inciso II, “a”, do ADCT);

 

c)  e da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto (artigo 10, inciso II, “b”, do ADCT).

 

É possível afirmar que esses casos são de estabilidade provisória, ou seja, durante determinado período, a dispensa é vedada. São proteções em sentido estrito contra a dispensa, expressas no texto constitucional.

 

1.3 Dispensa Arbitrária: conceito

 

Conforme visto anteriormente, a grande inovação trazida pela Constituição Federal de 1988,[21] relativamente à proteção da relação de emprego, foi a proibição de dispensa arbitrária de empregados, prevista no seu artigo 7º, inciso I.

 

Assim, aplicados os preceitos constitucionais e legais, passam a existir quatro tipos de dispensa: a imotivada, que ora se equipara à dispensa arbitrária; a motivada (no entanto, sem justa causa), onde o artigo 165 da CLT[22] é aplicado por analogia, existindo uma justificativa para a dispensa, por motivo técnico, econômico ou financeiro; a com justa causa, prevista no artigo 482 da CLT e outros; e, por fim, a discriminatória, prevista na Lei nº 9.029, de 1995[23] que, comprovada, gera a reintegração ou a indenização compensatória.

 

Maurício Godinho Delgado,[24] no entanto, diverge da ideia, sugerindo que existam apenas dois tipos de dispensa: com ou sem justa causa. O autor entende que a dispensa arbitrária é a que não se funda em um motivo técnico, econômico ou disciplinar; motivos esses que são extraídos analogicamente do artigo 165 da CLT; e que dispensa sem justa causa é a que não se fundamenta em qualquer dos motivos previstos em lei,[25] como faltas graves.

 

Para o referido autor, a dispensa imotivada (arbitrária) ou dispensa sem justa causa, ou, ainda, despedida injusta: todas traduzem a ideia de falta de um motivo legalmente tipificado, sendo, assim, equivalentes. Desse modo, qualquer dispensa realizada fora dessas regras pode ser chamada de arbitrária, injustificada ou imotivada. E a consequência da dispensa arbitrária é a nulidade do ato, sendo devida a reintegração ao emprego.[26]

 

Atualmente, o entendimento predominante é de que o valor do FGTS, acrescido da multa de 40%, caracteriza a indenização compensatória pela perda arbitrária do emprego. No entanto, a Constituição Federal não admite a dispensa arbitrária, de forma que essa não pode ser compensada com o valor monetário. E, além disso, como visto anteriormente, o FGTS se tornou um direito independente da garantia de emprego na Constituição Federal. Portanto, a indenização prevista no art. 10, inciso I, do ADCT, deve corresponder a uma compensação devida pela dispensa do empregado sem justa causa, que não seja arbitrária, visto que esta última é proibida constitucionalmente.  

 

1.4 Aplicabilidade da Norma Constitucional

 

Conforme visto anteriormente, o art. 7º, inciso I, da Constituição Federal – que deixa pendente a edição de lei complementar para regularizar a proteção contra dispensa arbitrária – seria uma norma não autoaplicável, valendo, até a edição da lei, a regra do ADCT, que majora a multa sobre o FGTS para 40%.

 

Contudo, é importante referir o entendimento do autor José Afonso da Silva,[27] que, ao analisar o art. 7º, inciso I, entende que a norma é de aplicabilidade imediata. Isso porque autor considera que a garantia do emprego nos termos da Constituição Federal é por si só suficiente para gerar o direito nela previsto. A lei complementar serviria apenas para determinar os limites dessa aplicabilidade. Assim, para o autor, a proteção contra a dispensa arbitrária ou sem justa causa é uma garantia constitucional dos trabalhadores, norma de eficácia plena.

 

A maior parte dos doutrinadores diverge do entendimento de José Afonso da Silva, defendendo a necessidade de lei complementar para regularização da proteção contra a dispensa arbitrária e, ainda, entendendo a regra estipulada pelo artigo 10, inciso I, do ADCT, como compensação pela perda do emprego, como mencionado no item 2.3.

 

 

2.  A CONVENÇÃO Nº 158 DA OIT

 

A Convenção nº 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) versa sobre o término unilateral da relação de emprego por iniciativa do empregador, evidenciando o princípio da proteção contra a dispensa arbitrária. Este tratado determina que haja uma justificativa para o término da relação empregatícia, que esteja relacionada com a capacidade ou a conduta do trabalhador, ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa. Dispõe o artigo 4º da Convenção:[28]

 

Art. 4. Não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço.

 

Em seus vinte e dois artigos, o texto abrange todas as áreas da atividade econômica e todas as pessoas empregadas (art. 2.1). A Convenção nº 158 foi aprovada na 68ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho em Genebra, ocorrida em 1982, e passou a vigorar internacionalmente em 23 de novembro de 1985. O Congresso Nacional a aprovou em 17 de setembro de 1992, e o Governo brasileiro ratificou em 4 de janeiro de 1995. Assim, a convenção 158 passou a vigorar no Brasil doze meses depois. No entanto, foi somente após a publicação do Decreto nº. 1.855, de 10 de abril de 1996, que a Convenção nº 158 passou a ter eficácia jurídica no território nacional. Isso porque, através do Decreto, o Governo Federal publicou o texto oficial no idioma português, promulgando, assim, a ratificação da Convenção.

 

É importante mencionar que, em 8 de julho de 1996, foi ajuizada pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) e pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADIN nº 1.480-3/DF,[29] com o argumento de que a Convenção nº 158 da OIT seria inconstitucional, pois precisaria de lei complementar para sua regulamentação. Contudo, a referida ADIN perdeu o objeto, no mesmo ano, quando o Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, denunciou a ratificação da Convenção, mediante nota enviada ao Diretor-Geral da Repartição Internacional do Trabalho assinada pelo Embaixador Chefe da Delegação Permanente do Brasil em Genebra (Ofício nº 397, de 20/11/96).

 

Foi através do Decreto nº 2.100, de 20 de dezembro de 1996, que o Presidente da República promulgou a denúncia e anunciou que a Convenção deixaria de vigorar no Brasil. Assim, a ADIN nº 1.480-3/DF perdeu seu objeto, sendo extinta em 27 de junho de 2001 e publicada no Diário Oficial da União em 8 de agosto de 2001.

 

Ainda, está em tramitação a Ação Direta de Inconstitucionalidade -   ADIN nº 1.625, ajuizada, por sua vez, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e pela Central Única dos Trabalhadores (CUT). Na referida ADIN, as entidades contestam a validade do Decreto 2.100/96, alegando que, se a Convenção 158 foi aprovada pelo Congresso Nacional, o ato unilateral do Presidente da República que denunciou a eficácia de um tratado internacional fere o artigo 49, inciso I, da Constituição Federal de 1988, que dispõe ser de competência exclusiva do Congresso Nacional as decisões sobre os Tratados Internacionais.

 

2.1 Constitucionalidade da Convenção nº 158 da OIT

 

A problemática criada em virtude da ratificação (ou não) da Convenção 158 da OIT gerou outra discussão: a sua compatibilidade com a Constituição Federal de 1988. Como já analisado, a Constituição protege o trabalhador contra a dispensa arbitrária, nos termos de lei complementar. Paralelo a isso, o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT majora a porcentagem paga pelo empregador sobre o montante do FGTS do trabalhador para 40%, enquanto não for editada a referida lei complementar.

 

Isto posto, se a Convenção trata de matéria relacionada à previsão constitucional do artigo 7º, inciso I, naturalmente levantou-se a discussão acerca da constitucionalidade formal e material da Convenção nº 158, questionando a compatibilidade do tratado ratificado com a exigência constitucional de lei complementar que regule a matéria. E mais, discute-se a existência de compatibilidade entre as consequências previstas para a hipótese de dispensa arbitrária com as limitações impostas pelo Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Tais discussões resultaram em três correntes de pensamento.

 

A primeira corrente afirma que a Convenção nº 158 é totalmente incompatível com o texto constitucional, considerando a inexistência da lei complementar, tal qual como disposto na Lei Maior. Desta forma, se o tratado internacional é promulgado através de lei ordinária, não cabe a este a pretensão de suprir esta lacuna. Ademais, o ADCT veda outra forma de proteção ao trabalhador que não seja a indenização pecuniária, ou seja, a multa sobre o saldo do FGTS. Para a segunda corrente, a Convenção nº 158 da OIT, por si só, não é inconstitucional, mas sua aplicabilidade no território nacional é condicionada à edição de lei complementar. E, por fim, a terceira linha de pensamento afirma que a Convenção é totalmente compatível com a Constituição Brasileira, tanto formal quanto materialmente e, por isso, tem condições de regular a proteção contra a dispensa arbitrária do trabalhador brasileiro.

 

2.1.1 Constitucionalidade Formal

 

A polêmica acerca da constitucionalidade da Convenção nº 158 da OIT gira em torno da sua formalidade, eis que foi aprovada através de decreto legislativo e promulgada por outro decreto. Isso significa dizer que foi através de leis ordinárias que o tratado internacional passou a ter eficácia no território brasileiro.

 

Considerando o disposto no artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, a matéria que versa sobre a proibição de dispensa arbitrária deverá ser regulada por lei complementar, ou seja, a Convenção só passaria a ter plena eficácia no país se tivesse sido disciplinada por lei complementar, e não como de fato ocorreu. Assim, a doutrina justrabalhista se dividiu entre os que defendem a inconstitucionalidade formal da Convenção de um lado, e, de outro, os defensores da sua compatibilidade com a Lei Maior. Para os primeiros, a vigência de um tratado internacional, que será incorporado ao direito interno como lei ordinária, se torna incompatível com a reserva criada pela Constituição, que condiciona o regulamento da matéria através de lei complementar.

 

No entanto, para os defensores da constitucionalidade formal da Convenção nº 158 da OIT, não é compreensível o argumento que exclui a possibilidade de um tratado regular um determinado tema constitucional apenas porque no direito interno se exige lei complementar que regule tal fim. Para estes, essa postura criaria um óbice à internacionalização do país. Há, também, outro argumento que reforça a tese de que a Convenção nº 158 é constitucional, fundamentado no artigo 5º, § 2º da Constituição, que dispõe que os direitos e garantias fundamentais expressos na Lei Maior não excluem os previstos nos tratados de direitos humanos dos quais o Brasil faça parte, pois integram o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e são direta e imediatamente exigíveis no ordenamento jurídico interno.

 

Ademais, o artigo 46 da Convenção de Viena do Direito dos Tratados, que foi promulgada no Brasil através do Decreto nº 7.030, em 14 de dezembro de 2009, dispõe que um Estado não pode alegar a violação de normas internas como justificativa para deixar de se obrigar a um tratado do qual é signatário.

 

2.1.2 Constitucionalidade Material

 

Dispõe o artigo 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que a proteção à relação de emprego está limitada ao pagamento ao trabalhador do montante disponível em sua conta do FGTS, acrescido de multa de 40% sobre este valor. Esta regra é válida até a edição de lei complementar que regule a matéria, conforme prevê o artigo 7º, inciso I, da Constituição Federal. Contudo, esta compensação pecuniária imposta pelo legislador ao empregador que dispensa arbitrariamente seu empregado não seria, então, compatível com os termos da Convenção nº 158 da OIT, pois esta dispõe que, além de receber a indenização, o trabalhador deverá ser reintegrado ao seu emprego.

 

Subentende-se que o artigo 7º, inciso I, da Constituição teria vedado a reintegração do trabalhador, por determinar que a previsão de indenização compensatória fique a cargo de lei complementar. Não obstante, a reintegração prevista na Convenção poderia ensejar um retorno ao sistema de estabilidade do trabalhador, já excluído do ordenamento jurídico pátrio.

 

Todavia, a Convenção refere claramente que a reintegração do trabalhador ao seu posto de trabalho não é obrigatória, mas sim uma das formas de reparação, caso comprovada a dispensa imotivada. Assim, a reintegração não é obrigatória, pois o texto a prevê como alternativa à indenização pecuniária, cabendo a cada país signatário da Convenção estabelecer a sua opção. A Organização Internacional do Trabalho tem adotado essa flexibilidade nas sanções de suas convenções, inclusive na própria Convenção nº 158, em virtude das diferentes realidades e planos jurídicos de cada país.

 

Por fim, cabe referir que a reintegração do trabalhador dispensado arbitrariamente, proposta na Convenção nº 158, difere-se da estabilidade anteriormente garantida ao trabalhador na legislação brasileira.

 

 

CONCLUSÃO

 

Com base no presente estudo, verifica-se que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu uma nova etapa da proteção contra a dispensa no Brasil, estipulando regras de proteção em sentido amplo e em sentido estrito. O seu artigo 7º, inciso I, expressa a proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, no entanto, limita sua aplicação à lei complementar, ainda inexistente.

 

Verifica-se, ainda, sobre a mesma temática, que o artigo 10, inciso I, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT majora a multa prevista em quatro vezes, até que seja promulgada a referida lei complementar.  Trata-se de uma forma de compensação: enquanto não houver a edição da lei complementar, a multa referente ao FGTS será majorada em quatro vezes em prol do trabalhador. Desse modo, o valor do FGTS, acrescido da multa de 40%, é entendido como a indenização compensatória pela perda arbitrária do emprego.

 

Por fim, com base na análise das discussões acerca da Convenção nº 158 da OIT, que veda a dispensa arbitrária e depende de Ação Direta de Inconstitucionalidade para ter eficácia na legislação brasileira, pode-se concluir que o trabalhador brasileiro permanece, ainda, sem a devida proteção à dispensa arbitrária.

 

 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL, Súmula nº 98 do TST. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2015.

 

BRASIL. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2015.

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1937. Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2015.

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1946. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2015.

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2015.

 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2015.

 

BRASIL. Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2015.

 

BRASIL. Enunciado nº 26 do Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2015.

 

BRASIL. Lei nº 4.682, de 24 de janeiro de 1923. Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2015.

 

BRASIL. Lei nº 5.107, de 1966. Disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2015.

 

BRASIL. Lei nº 62, de 05 de junho de 1935. Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2015.

 

BRASIL. Lei nº 9.029, de1995. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2015.

 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em . Acesso em: 21 abr. de 2015.

 

CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. Fazendo Justiça: a História do FGTS. 2009. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2015.

 

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14ª ed. São Paulo: LTr, 2015.

 

MARTINS, Sérgio Pinto. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015.

 

Organização Internacional do Trabalho. Convenções ratificadas pelo Brasil. Disponível em: . Acesso em: 21 abr. de 2015.

 

SILVA, Antônio Álvares da. Proteção contra a Dispensa na Nova Constituição. São Paulo: LTr, 1992.

 

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2012.

 

VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

 


[1] MARTINS, Sérgio Pinto. Curso de Direito do Trabalho. 7ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2015.

 

[2] BRASIL. Lei nº 4.682, de 24 de janeiro de 1923. Disponível em:

ccivil_03/decreto/Historicos/DPL/DPL4682.htm>. Acesso em: 17 abr. 2015.

 

[3] BRASIL. Lei nº 62, de 05 de junho de 1935. Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2015.

 

[4] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1937. Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2015.

 

[5] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1946. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2015.

 

[6] VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

 

[7] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14ª Ed. São Paulo: LTr, 2015.

 

[8] SILVA, Antônio Álvares da. Proteção contra a Dispensa na Nova Constituição. São Paulo: LTr, 1992.

 

[9] BRASIL. Lei nº 5.107, de 1966. Disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2015.

 

[10] BRASIL. Lei nº 5.107, de 1966. Disponível em: Acesso em: 18 abr. 2015.

 

[11] CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. Fazendo Justiça: a História do FGTS. 2009. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2015.

 

[12] BRASIL. Enunciado nº 26 do Tribunal Superior do Trabalho. Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2015.

 

[13] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: . Acesso em: 17 abr. 2015.

 

[14] BRASIL. Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2015.

 

[15] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2015.

 

[16] VIANNA, Luiz Werneck. Liberalismo e sindicato no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

 

[17] BRASIL, Súmula nº 98 do TST. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2015.

 

[18] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2012.

 

[19] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2015.

 

[20] BRASIL. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em: . Acesso em: 19 abr. 2015.

 

[21] Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;

 

[22] Art. 165 da CLT, quanto à restrição para dispensa do empregado representante na CIPA: “os titulares da representação dos empregados nas CIPA (s) não poderão sofrer despedida arbitrária, entendendo-se como tal a que não se fundar em motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro.”

 

[23] BRASIL. Lei nº 9.029, de1995. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2015.

 

[24] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14ª Ed. São Paulo: LTr, 2015.

 

[25] São exemplos: rol do artigo 482 da CLT, além dos artigos 433, II, 508, 158, § único e artigo 240,  § único, todos da CLT; Lei nº 6.354/76, art.20; e Decreto nº 95.247/87, art. 7º, § 3º.

 

[26] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 14ª Ed. São Paulo: LTr, 2015.

 

[27] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 35ª ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2012.

 

[28] Organização Internacional do Trabalho. Convenções ratificadas pelo Brasil. Disponível em: . Acesso em: 21 abr. de 2015.

 

[29] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em . Acesso em: 21 abr. de 2015.

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Dezembro/2016