A PROPOSTA DE SUPERAÇÃO DA CRISE ECONÔMICA POR MEIO DA FLEXIBILIZAÇÃO DA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA VIA  NEGOCIAÇÃO COLETIVA

 

 

 

MÔNICA DE OLIVEIRA CASARTELLI

Advogada da União, Ex-Consultora Jurídica do Ministério do Trabalho e Emprego, Ex-Coordenadora-Geral do Departamento Trabalhista da Procuradoria-Geral da União.

 

 

 

Resumo: O artigo discorre sobre algumas formas de trabalho em condições análogas a de escravo e apresenta preocupações de natureza jurídica e social com reformas na legislação trabalhista que buscam permitir a renúncia pelos trabalhadores de direitos fundamentais por meio da negociação coletiva. Propõe a necessidade de uma reflexão que leve em consideração a história do direito do trabalho no Brasil, as conquistas e as limitações impostas pelo próprio sistema jurídico brasileiro à autodeterminação coletiva e à autonomia da vontade e que vedam a renúncia de direitos que versem sobre a integridade física e moral dos trabalhadores, alertando para o fato de que essas reformas podem conduzir a retrocessos como o aumento do trabalho degradante no Brasil.

 

Palavras-Chave: Flexibilização; Trabalho Escravo; Cidadania; Negociação Coletiva; Limitações.

 

 

 

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 O trabalho em condições análogas a de escravo (a jornada exaustiva) e a responsabilidade do estado pela sua erradicação; 3 A autodeterminação coletiva, autonomia da vontade e suas limitações; 4 Conclusão; Referências.

 

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

Nos últimos meses a ideia de que o Brasil poderá vencer a crise econômica pela via da flexibilização dos direitos trabalhistas por meio da negociação coletiva entre as categorias profissionais e econômicas vem tomando corpo e sendo propagada com frequência pelos meios de comunicação e por setores da sociedade e do poder público como a solução para a retomada do crescimento e da geração de emprego no Brasil.

 

Construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, constituem os objetivos fundamentais da República, consagrados no art. 3º da Carta de 1988.

 

Da simples leitura de tal dispositivo Constitucional extrai-se a acentuada preocupação da Constituição de 1988 em assegurar a dignidade e o bem-estar da pessoa humana, como um imperativo de justiça social.

 

E é na temática da proteção aos direitos fundamentais do homem que trabalha que se insere a necessidade de políticas públicas eficientes para o combate ao trabalho precário e em condições degradantes.

 

O nosso sistema constitucional de 1988 não consagra a ideia de um Estado que se abstém da tutela e intervenção para a garantia da observância a direitos fundamentais, ao contrário, apresenta um Estado voltado ao bem-estar social. Assim, a premissa é de que a omissão Estatal viola a ordem constitucional pois torna-se impensável hoje um retorno ao modelo de Estado Abstenseísta (BASTOS, 1994, p. 68). Nessa perspectiva o Estado tem total responsabilidade no processo de consolidação da cidadania.

 

Este artigo abordará a necessidade de combate ao trabalho indigno e de promoção do trabalho decente e a responsabilidade do Estado por adotar políticas públicas eficientes. Falará, ainda que brevemente, do princípio da autodeterminação coletiva e da autonomia da vontade e de suas limitações com a finalidade de alertar para a necessidade de evitarmos retrocessos nesse campo da promoção da justiça social.

 

 

2 O TRABALHO EM CONDIÇÕES ANÁLOGAS A DE ESCRAVO (A JORNADA EXAUSTIVA) E A RESPONSABILIDADE DO ESTADO PELA SUA ERRADICAÇÃO

 

A História do Brasil nos demonstra que o nosso País praticou as mais diversas formas de trabalho escravo desde os primórdios do Brasil Colônia. Convivemos com a exploração do trabalho dos índios, do trabalho do negro traficado da África, instituímos a servidão no meio rural em favor dos senhores feudais e até hoje o Estado apresenta números alarmantes sobre resgate de trabalhadores em condições análogas a de escravo, o que pode facilmente ser verificado pelos números apresentados pelo Ministério do Trabalho por meio da Secretaria de Inspeção do Trabalho.

 

As normas protetivas do Direito do Trabalho derivaram, portanto, da necessidade de compensar juridicamente anos de prática de trabalho escravo e degradante no Brasil. Eis a dura realidade que não pode ser simplesmente ignorada.

 

Segundo dados retirados do sítio do Ministério do Trabalho e Previdência Social[1], no ano de 2014 no Brasil, foram realizadas 175 operações coordenadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho para a erradicação do trabalho escravo e lavrados 3927 autos de infração com a constatação de que 1752 trabalhadores exerciam atividades em condições análogas a de escravo. Em 2015, foram realizadas 143 operações, lavrados 2748 autos de infração e encontrados 1010 trabalhadores em condições análogas a de escravo.

 

Veja-se que são mais de 2700 trabalhadores resgatados nos últimos dois anos, segundo dados oficiais. Estes números denotam que a situação ainda  é bastante grave, uma vez que fica fácil concluir que estes casos,por se tratarem apenas daqueles que resultam de estabelecimentos inspecionados pela fiscalização do Ministério do Trabalho, não demonstram, por si só, a realidade estatística que, por certo, é infinitamente maior. Não obstante isso, as políticas públicas ainda apresentam carências e fragilidades. Prova disso são as propostas legislativas mais recentes para a flexibilização de direitos trabalhistas e a própria suspensão da eficácia das Portarias Interministeriais MTE/SDH nº 02 e Portaria 540/2004, originando, como consequência, a edição da Portaria Interministerial MPTS e SDH nº 04, de 11 de maio de 2016. O efeito prático dessa suspensão é que o Ministério do Trabalho não está mais publicando o cadastro de empregadores que tenham mantido trabalhadores em condições análogas a de escravo.

 

O Trabalho em condições análogas a de escravo é uma forma de super exploração do trabalho que se dá por diversos modos e formas de execução.

 

No Brasil a definição de trabalho em condições análogas a de escravo é extraída principalmente do Código Penal. O art. 149 do Código Penal dispunha, na redação antiga, o que segue:

 

Art. 149. Reduzir alguém à condição análoga à de escravo:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos.

 

Com a sua alteração legislativa, por força da Lei nº 10.803, de 11 de dezembro de 2003, passou o art. 149 do Código Penal a vigorar com a seguinte redação:

 

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I - cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

II - mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

§ 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I - contra criança ou adolescente;

II - por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.

 

Durante muito tempo se discutiu qual seria o bem protegido, ou quais seriam os bens protegidos pela figura típica do art. 149 do Código Penal. Sabemos que a liberdade é um deles, não havendo dúvida também de que a conduta descrita na norma afronta, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana.

 

As diversas formas de trabalho em condições análogas a de escravo, não se limitam, como pensam alguns juristas, ao trabalho forçado e aquele que restringe a possibilidade de locomoção do trabalhador, seja por dívidas ou por outra razão, mas englobam também a submissão do trabalhador à jornada exaustiva, à condições degradantes de trabalho, à vigilância ostensiva no local de trabalho, entre outras situações.

 

Com relação à jornada exaustiva, veja-se que não há violação à liberdade da pessoa como ocorre com outras formas de trabalho escravo. Para a reflexão desta temática o momento é oportuno, diante das declarações que vem sendo veiculadas na imprensa nacional sobre a necessidade de maior flexibilização da jornada.

 

A jornada exaustiva, e que diz com o trabalho em condições análogas a de escravo sim, é definida no art. 3º, § 1º, alínea “b” da IN nº 91, de 05 de outubro de 2011, da Secretaria de Inspeção do Trabalho como sendo

 

toda jornada de trabalho de natureza física e mental que, por sua extensão ou intensidade, cause esgotamento das capacidades corpóreas e produtivas da pessoa do trabalhador, ainda que transitória e temporalmente, acarretando, em consequência, riscos a sua segurança e/ou sua saúde.

 

O que importa para essa modalidade de execução é que a jornada seja capaz de exaurir o trabalhador lhe trazendo prejuízos à vida e a sua saúde física e mental e que decorra de uma situação de sujeição, seja de maneira forçada ou pela circunstância de que o trabalhador precisa garantir o seu sustento e é levado a crer que o empregador ou tomador tem o direito de exigir essa jornada muitas vezes além da jornada extraordinária prevista em lei (BRITO FILHO, 2014, p.).

 

Mesmo com a legislação de regência que prevê limites para o labor extraordinário, muitos são os casos em que o trabalhador labora em jornada exaustiva, indo além do seu limite físico e mental.

 

Com relação ao trabalho degradante, pode ser definido como aquele que submete o trabalhador a um cenário humilhante, aviltante, indigno. Se o trabalhador presta serviços exposto à falta de segurança e com riscos a sua saúde está sim presente o trabalho em condições degradantes.

 

Entendo, na mesma esteira do que dispõe a IN nº 91 de 5 de outubro de 2011, da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, que trata da erradicação do trabalho em condição análoga a de escravo, que é possível considerar como trabalho em condições análogas a de escravo as seguintes situações, quer em conjunto ou isoladamente:

 

– A submissão de trabalhador a trabalhos forçados;

 

– A submissão de trabalhador a jornada exaustiva;

 

– A sujeição de trabalhador a condições degradantes de trabalho;

 

– A restrição da locomoção do trabalhador, seja em razão de dívida contraída, seja por meio do cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, ou por qualquer outro meio com o fim de retê-lo no local de trabalho;

 

– A vigilância ostensiva no local de trabalho por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

 

– A posse de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, por parte do empregador ou seu preposto, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

 

O fato é que o Brasil convive com esta dura realidade da prática do trabalho degradante, da jornada exaustiva e do trabalho em condições precárias.

 

Segundo Maurício Godinho Delgado

 

[...] a pessoa humana, com sua dignidade, constitui o ponto central do Estado Democrático de Direito. Daí estabelecerem determinadas constituições o princípio da dignidade da pessoa humana como a diretriz cardeal de toda a ordem jurídica, com firme assento constitucional (DELGADO; DELGADO, 2012, p. 25).

 

O sistema constitucional de 1988, como dito na introdução deste artigo, não consagra a existência de um Estado que se abstém da tutela e intervenção para a garantia da observância a direitos fundamentais, ao contrário, apresenta um Estado voltado ao bem-estar social. Assim, a premissa a ser desenvolvida neste breve trabalho é de que a omissão Estatal viola a ordem constitucional pois torna-se impensável hoje um retorno ao modelo de Estado Abstenseísta (BASTOS, 1994, p. 68).

 

Nessa perspectiva o Estado tem total responsabilidade no processo de consolidação da cidadania e precisa de políticas públicas eficientes para o combate e erradicação do trabalho em condições análogas a de escravo.

 

A Advocacia-Geral da União, instituição a que pertenço, vem exercendo importante papel na defesa dos autos de infração e atos da fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego no combate ao trabalho precário e degradante.

 

É pela realidade fática acima exposta, e ainda em pleno enfrentamento pelo Brasil, é que nos preocupa o movimento, que não é novo, mas que neste momento ganha força diante da crise econômica que atinge o Brasil, da busca da flexibilização de direitos trabalhistas como solução para a retomada do crescimento e para o progresso do País.

 

 

3 A AUTODETERMINAÇÃO COLETIVA, AUTONOMIA DA VONTADE E SUAS LIMITAÇÕES

 

Tratar deste tema sempre foi tormentoso para a doutrina e para a jurisprudência. Daí porque as breves linhas deste artigo não possuem qualquer pretensão de inovar ou sequer de enfrentar o tema com a profundidade que exige, pela mais absoluta impossibilidade de fazê-lo neste pequeno espaço. Todavia, arriscamos na missão de instigar o debate com a finalidade única de alertar para o momento complexo que estamos vivendo e para a necessidade de reflexão e de estabelecimento de pautas mínimas tendentes à manutenção dos direitos sociais trabalhistas.

 

Um debate que se pretenda honesto para enfrentar o tema da flexibilização da legislação trabalhista num País com esse histórico de escravidão e privação de direitos mais elementares dos trabalhadores, terá que ser amplo, profundo, envolvendo a sociedade como um todo, os trabalhadores, suas representações, o setor acadêmico, Advogados Públicos, Privados, Juízes, Membros do Ministério Público do Trabalho, assim como os Empresários e suas representações.

 

Para Mário de La Cueva,

 

a história do Direito do Trabalho é um dos episódios na luta do homem pela liberdade, pela dignidade pessoal e social e pela conquista de um mínimo de bem-estar que, ao mesmo tempo em que dignifique a vida da pessoa humana, facilite e fomente o desenvolvimento da razão e da consciência (CUEVA, 1965, p. 21).

 

A Desembargadora Carmem Camino do TRT4ª Região, já anunciava que era preciso:

 

afastar a falácia de ser o intervencionismo do Estado um mal a ser banido e, com ele, o Direito do Trabalho. A intervenção do Estado,  numa sociedade marcada pelo egoísmo e pelo culto à riqueza material, constitui a única forma de prover as necessidades da população hipossuficiente, não só economicamente, mas em outros aspectos importantes da vida, como bem assinalou o Constituinteno art. 6º da Carta de 1988 (CAMINO, 2004, p. 9).

 

Com relação às propostas legislativas para reforma trabalhista em trâmite no Congresso Nacional, é preciso ter muito cuidado no aprofundamento deste debate, pois caso contrário certamente conduzirão ao trabalho degradante,  ao trabalho precário, com grande prejuízo à população mais carente e que vê nos direitos trabalhistas e na Justiça do Trabalho a garantia da realização do imperativo de justiça social.

 

Digno de nota é a posição externada por Átila da Rold Roesler, Juiz do TRT4, que em sua obra Crise Econômica, Flexibilização e o Valor Social do Trabalho, ressalta:

 

O objetivo fundamental de um Estado Democrático de Direito deve ser o de garantir a todos os homens o direito de trabalhar e de viver com dignidade. A atuação das pessoas e da sociedade diante da ordem econômica contemporânea deve pautar-se, sempre, por dar ênfase ao valor social do trabalho. Afinal, somente através do trabalho é que se promoverá a diminuição das desigualdades regionais e sociais pela inclusão dos menos favorecidos.

[...]

O momento atual é propício para se resgatar a importância do direito do trabalho como forma de limitar a exploração do trabalho pelo capital nessa conjuntura onde cada vez mais se afirma em favor da flexibilização das normas trabalhistas em face de uma suposta inadequação da legislação laboral em vigor (ROESLER, 2014, p. 95-97).

 

A Professora e Desembargadora do TRT4 Carmem Camino, já em 2004, em sua obra Direito Individual do Trabalhoalertava que:

 

a apregoada aposta na negociação coletiva esbarrava na ausência de organização sindical uniforme e coesa no Brasil e, também, nas forças díspares das empresas, muitas delas sem condições de negociar. [...] micro e pequenas empresas com organização incipiente – achatadas por uma política fiscal espoliante e pela concorrência desleal dos grandes conglomerados internacionais – e trabalhadores desqualificados à mercê de lideranças sindicais despreparadas. [...]Essa ausência de condições minimamente isonômicas intracategorial desequilibra o cenário da autonomia coletiva e, especialmente, em relação aos trabalhadores, desativa o elemento catalizador da organização coletiva: a solidariedade de classe (CAMINO, 2004, p. 54).

 

O fato é que na correlação de forças entre o forte e o fraco,a liberdade sem freios escraviza e a lei liberta. Entendo que permanece completamente válida a premissa de que alguns direitos não estão e não podem estar na esfera de disponibilidade do empregado para negociaçãocoletiva, fazendo parte do que se convém denominar de núcleo duro de direitos, também chamado de contrato mínimo.

 

Devem haver limites para a negociação coletiva a fim de evitar o comprometimento de direitos fundamentais.

 

Não há verdadeiramente uma equiparação de forças entre capital e trabalho na relação de emprego que permita uma negociação coletiva impermeável às pressões que decorrem naturalmente dos próprios elementos caracterizadores da relação de emprego, quais sejam a subordinação e a dependência econômica do empregado em relação ao empregador.

 

É por demais utópico imaginar que tais elementos não pesam em uma mesa de negociação entre capital e trabalho e que uma negociação sem limites legais claros conduzirá ao estabelecimento de condições de trabalho justas.  E esse panorama se agrava quando relembramos a história do trabalho no Brasil, como enfatizado anteriormente.

 

Parto da minha vivência como Consultora Jurídica do Ministério do Trabalho para afirmar que, mesmo em relação a categorias altamente organizadas historicamente, como as representadas pelos sindicatos de trabalhadores avulsos nos portos(o que se justifica pela origem da mão deobra), a desregulamentação e o limbo normativo impostos às relações de trabalho pela Lei nº 8.630/93, depoissubstituída pela Lei nº 12.815/13, que relegou quase que totalmente as condições de trabalho dessas categorias à negociação coletiva, tem feito com que esses trabalhadores já penalizados pela automação, acumulem a experiência amarga de ver seus direitos diminuídos a cada convenção coletiva firmada com possibilidade mínima ou quase nula de reação, diante dos argumentos que giram em torno do “custo Brasil”da operação nos Portos.

 

É importante enfatizar, todavia, que não se está a negar a importânciado Princípio da autodeterminação coletiva, posto que de suma relevância para o Direito do Trabalho.

 

Todavia, o que sustentamos, como outrorajá enfatizou a Prof. Carmem Camino e enfatizam outros doutrinadores,é que o princípio fundamental do Direito do Trabalho ainda é o Princípio Protetivo, porquanto a tutela do Estado é necessária para equilibrar a relação capital e trabalho.

 

O princípio da autodeterminação coletiva encontra sim seu limitador na proteção do trabalhador e nos princípios da irrenunciabilidade e da razoabilidade.

 

A limitação à autonomia da vontade e à autodeterminação coletiva, portanto, são coerentes com o princípio que inspira a formação do direito do trabalho, que é o princípio protetivo.

 

Como enfatizado anteriormente, sempre foi difícil para doutrina e para a jurisprudência trabalhistas estabelecer quais normas poderiam, à luz do direito positivo, ser consideradas renunciáveis ou irrenunciáveis, partindo-se da constatação de que nenhum princípio é absoluto. Plá Rodrigues (2000, p. 171), afirma a evidência de que não é necessário um reconhecimento expresso e nem sequer implícito no direito positivo, senão que muitas vezes esse caráter irrenunciável deriva do próprio conteúdo da norma ou de sua finalidade.

 

Assim, parece-nos imperioso sustentar que,em relação ao direito individual do Trabalho, os direitos relacionados à integridade física, mental e moral do trabalhador, afetos à dignidade da pessoa humana, são de todo irrenunciáveis pelo trabalhador. Se assim não fosse, o trabalhador poderia ser levadoa abdicar da proteção da lei e das normas coletivas.

 

No plano do direito coletivo do trabalho, o limite é aquele traçado na Constituição Federal de 1988 e nas normas da CLT relativas à segurança e saúde do trabalhador, que a doutrina denomina de contrato mínimo. Não é por outra razão que esses são os direitos que estão na mira das reformas legislativas propostas, num movimento ascendente de desconstitucionalização dos direitos trabalhistas, fenômeno que também se verificou a partir do final da década de 90 com a fragilização dos direitos previdenciários “lato sensu”.

 

Na verdade, parto da premissa de que é a proteção que justifica as normas trabalhistas e ainda, e principalmente, a organização social das categorias profissionais em sindicatos. O reconhecimento dos acordos e convenções coletivas a que se reporta o art. 7º, inciso XXVI da CF/88 só existe em função da proteção e como ato de concessão do Estado. O reconhecimento das normas coletivas como fonte de direito do trabalho é uma necessidade e isso é indiscutível porque contido na Lei maior.

 

Ocorre que, por vezes, há uma distorção na interpretação do art. 7º, inciso XXVI da CF, na pretensão de utilizá-lo para justificar a renúncia de direitos sociais e fundamentais dos trabalhadores, de forma a liquidar com o princípio da proteção e com a própria organização e força das organizações sindicais (ALMIRO, SEVERO, 2014, p. 110-115).

 

Sobre este tema, considero brilhante a análise da Professora e Juíza do Trabalho da 4ª Região, Valdete Souto Severo, quando refere:

 

Professar a possibilidade de que os trabalhadores se reúnam em sindicatos, prestem contribuições periódicas, travem discussões muitas vezes tormentosas com as empresas, para ao final desse árduo caminho possuírem menos do que teriam se ficassem trabalhando de cabeça baixa, sem qualquer movimento coletivo, é no mínimo revoltante. Talvez seja mais do que isso. Falacioso. Brutal. Talvez nos falte o conceito adequado. Admitir que os trabalhadores se reúnam e abram mão do que é irrenunciável, do que é reconhecido pelo Estado como o mínimo necessário à prática do princípio da proteção, é um modo de aniquilar a força coletiva. É um modo de cooptar o movimento sindical, que não por acaso figura no discurso flexibilizador como a razão de ser da mitigação de direitos trabalhistas (ALMIRO; SEVERO, 2014, p. 110).

 

É preciso acima de tudo ter cuidado com o argumento em prol da flexibilização no sentido de que ela será capaz de fortalecer a atuação dos sindicatos e acabar com a crise econômica.

 

Para Melhado,

 

a crise de emprego nos países centrais do capitalismo, o enfraquecimento dos sindicatos e a excepcional volatilidade adquirida pelo capital funcionam como fonte de incremento do poder do empregador. O discurso do fim da história e do pensamento único dá alicerce ideológico ao fortalecimento do mercado, visto como um templo diante do qual são imoladas garantias legais de proteção ao trabalho. [...] quanto maior a flexibilização das relações laborais, menor a capacidade de negociação do trabalhador e maior, portanto, o poder do capital (MELHADO, 2006, p. 167).

 

As propostas legislativas que tramitam no Senado Federal para permissão da terceirização na atividade-fim, a forma como o Estado permanece a contratar empresas terceirizadas e a lutar pela comprovação de que fiscaliza o trabalho a fim de eximir-se da responsabilidade subsidiária, nos termos do julgamento da ADC nº 16 pelo STF, as práticas de trabalho em condições análogas a de escravo ainda em números alarmantes no Brasil, as propostas da CNI – Confederação Nacional da Industria veiculadas na Imprensa para aumento substancial da jornada de trabalho, as últimas decisões do STF acerca do corte de ponto dos servidores públicos em greve e as manifestações das Centrais Sindicais, das Associações de Juízes e do Ministério Público do Trabalho e de Advogados que começam a se levantar contra este estado de coisas, são sinais de que inexiste o apregoado consenso em torno da necessidade de flexibilização de direitos trabalhistas.

 

O direito do trabalho tem uma interface nitidamente pública. A Constituição proclama direitos trabalhistas, sociais, de segunda geração constitucional, caraterizados como fundamentais, pois dizem diretamente com o Estado de Bem-Estar social e com a dignidade da pessoa humana.

 

A negociação coletiva é extremante importante para o Direito do Trabalho, mas deve estar comprometida com o valor social do Trabalho, com valores éticos e com a preservação e proteção do homem que trabalha. A crise econômica que assola o Brasil e o mundo não tem sua causa na proteção da integridade física, mental e moral do trabalhador, tampouco é possível afirmar com dados estatísticos que a flexibilização de direitos mínimos dos trabalhadores será capaz de resultar no aumento do emprego no Brasil ou no alcance do pleno emprego a que a CF/88 se refere. Pode sim, resultar na ampliação do trabalho precário, em condições degradantes e em condições análogas a de escravo.

 

 

4 CONCLUSÃO

 

Existe uma lógica, no mínimo perversa, na defesa da precarização de relações de trabalho para o fim de combater o desemprego.

 

Os Direitos Sociais do Trabalho e o Direito Social ao Trabalho digno não dialogam com a lógica economicista, de natureza meramente fiscal, que preconiza a necessidade de flexibilizar custos para gerar riquezas, assim como também não seguem essa lógica o Direito Previdenciário e o Direto Ambiental, por exemplo.

 

Não foi à toa que o Constituinte de 88 alçou vários direitos trabalhistas à categoria de direitos constitucionalmente protegidos e de natureza fundamental.

 

Com relação aos direitos previdenciários “lato sensu”, a partir do final da década de 90, assistimos um verdadeiro processo de desconstitucionalização, principalmente com o advento das Emendas Constitucionais nº 20/98 (Regime Geral de Previdência) e Emenda Constitucional nº 41/2013 (Regime Próprio dos servidores Públicos). Sobre este tema recomendo valoroso artigo do  Prof. José Ricardo Caetano Costa intitulado “Neocoservadorismo e direitos previdenciários: a desconstitucionalização dos direitos sociais previdenciários nas duas últimas décadas” in Direito e Justiça Social da Editora da FURG, Rio Grande, 2015.

 

As investidas contra as normas protetivas trabalhistas não são novas e seguem a mesma sorte do movimento ocorrido desde o final da década de 90 com os direitos previdenciários.

 

As teses economicistas, se levadas às últimas consequências, são capazes de comprometer todo e qualquer direito social e conduzir, à guisa de exemplo, à própria extinção da Justiça do Trabalho, tudo em prol do racionamento de estruturas e da necessidade de cortes orçamentários, com inegável prejuízo à parcela mais carente da população brasileira que perderia a garantia de um Poder Judiciário especializado e voltado à realização do imperativo da Justiça Social no trato das relações laborais.

 

O Direito do Trabalho dialoga com o valor social do trabalho, com a vida, com a cidadania, com a dignidade da pessoa humana e com a necessidade de erradicação da pobreza e de redução das desigualdades sociais, conforme preconizado pelos arts. 1º e 3º da Constituição Federal de 1988. Tais valores, por certo, não são passíveis de mera quantificação monetária e não atendem à lógica economicista que se baseia na ideia de escassez de recursos monetários.

 

Para que se promova a rediscussão do sistema brasileiro de relações de trabalho, a pretexto do argumento de valorizar a liberdade e a autonomia sindical ou de enfrentar a crise econômica em busca de novos postos de emprego, não poderá ser ignorado o caminho percorrido pela história das relações de trabalho no Brasil até hoje, as conquistas alcançadas a duras penas pelos trabalhadores em matéria de direitos fundamentais consagrados na CLT e na Constituição Federal de 1988, sendo que esse debate terá que ser amplamente difundido e contar com a participação de toda sociedade brasileira.

 

Neste debate, a Magistratura Trabalhista, o Ministério Público, a Advocacia Pública, Privada, Trabalhadores e Empresários haverão de ter papel fundamental. O debate deve ser plural.

 

Na relação entre o forte e o fraco, a liberdade sem qualquer limitação é capaz de escravizar e a lei há de ser libertadora. Alguns direitos não estão, e não podem estar, na esfera de disponibilidade do empregado para negociação fazendo parte no núcleo essencial denominado de contrato mínimo.

 

Precisamos estar atentos à verdadeira função da negociação coletiva  de pacificação dos conflitos, mas principalmente de possibilitar que as organizações coletivas possam se fortalecer e exercer de forma mais eficaz a proteção dos direitos dos trabalhadores que representam.

 

A modificação na legislação de regência de forma precipitada, que não possibilite um debate profundo e amplo, poderá conduzir ao trabalho degradante, agravando a crisevivenciada do trabalho em condições análogas a de escravo, consagrando verdadeiras jornadas exaustivas de trabalho e a inobservância de normas relativas à saúde física, mental e moral do trabalhador.

 

Nesse processo, é importante que se diga, o Supremo Tribunal Federal deverá estar atento a sua função de guardião da Constituição Federal e não possibilitar que decisões judiciais simplesmente fulminem ou suprimam da população a possibilidade do amplo debate que é próprio da esfera legislativa e que deve envolver toda a sociedade brasileira – porqueo resultado interfere diretamente na vida e na dignidade das pessoas. Isso é o que se denomina Democracia!

 

REFERÊNCIAS

 

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SILVA, Cristiane de Melo Mattos Sabino Gazola. Do Escravismo Colonial ao Trabalho Forçado Atual: a supressão dos direitos sócias fundamentais. São Paulo: LTr, 2009.

 


[1] RESULTADOS da fiscalização para erradicação do trabalho escravo de 2015. Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2016.

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Dezembro/2016