A TEORIA DO DIÁLOGO DAS FONTES E O DIREITO PROCESSUAL DO TRABALHO[1]

 

 

 

                                                        LUIZ PHILIPPE VIEIRA DE MELLO FILHO

                                                                            Ministro do Tribunal Superior do Trabalho

 

 

 

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO – 1. DESAFIOS. DESENVOLVIMENTO – 2. DESENVOLVENDO OS DESAFIOS – 3. A TEORIA DO DIÁLOGO DAS FONTES – 4. O DIÁLOGO DAS FONTES E O DIREITO MATERIAL – 5. O DIÁLOGO DAS FONTES E O DIREITO PROCESSUAL – 6. O DIÁLOGO DAS FONTES E A REFORMA TRABALHISTA – CONCLUSÃO

 

 

 

INTRODUÇÃO

        

O saudoso Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, em artigo publicado na Revista Brasileira de Direito Processual, sob o título “A jurisprudência como fonte do direito e o aprimoramento da magistratura”, referindo-se à obra seminal de Roscoe Pound, Las grandes tendencias del pensamiento jurídico, após acentuar o conflito permanente no mundo jurídico entre a segurança e a estabilidade, de um lado, e, de outro, as mutações constantes por que passa o Direito, cuja resistência às mudanças é excessiva, reivindicava que à ordem jurídica se imprimisse, simultaneamente, certo grau de estabilidade e de flexibilidade: “O direito deve ser estável e, contudo, não pode permanecer imóvel” [2].

        

Por volta de 1921, em conferências na Faculdade de Yale, Benjamin Cardoso alertou que o direito de nossos dias se deparava com dupla necessidade. A primeira era a de uma nova compilação que nos traria certeza e ordem, livrando-nos da confusão dos precedentes judiciários, objeto de estudo da ciência jurídica. A segunda necessidade era de uma filosofia que exerceria o papel de mediadora entre as exigências de estabilidade e de progresso em conflito, e fornecesse um princípio de evolução do Direito[3].

        

Entendia que nesse conflito repousava a grande antinomia com que se defronta a cada momento no Direito: segurança ou justiça; repouso ou movimento. Aduzia que o primeiro levaria a regras excessivamente rígidas e à estagnação do direito, enquanto que o segundo poderia levar ao completo arbítrio. Portanto, era preciso reunir duas tendências tão distintas que se movem em direções contrárias e fazê-las funcionar em uníssono.

        

Vivemos em uma sociedade bipolar? Certo ou errado; bem ou mal; esquerda ou direita; Estado liberal ou Estado social; segurança ou justiça?

        

Quanto a este último dilema, a evolução do direito e da jurisprudência, trata-se de reconhecer o papel da interpretação judicial no sistema jurídico e a natureza dessa fonte de direito ao lado da lei e os novos desafios para o judiciário e para os juízes.

        

No exercício da função jurisdicional, os juízes realizam uma atividade preponderantemente intelectual, quer na apreensão e reconstituição dos fatos, quer na subsunção desses ao ordenamento jurídico, quer na interpretação da norma ou mesmo na formulação de regras interpretativas.

        

Vamos tentar abrir as cortinas desse drama, que é o objeto de minha intervenção.

 

1. DESAFIOS. DESENVOLVIMENTO

 

1º CENÁRIO: PERÍODO QUE ANTECEDE A CONSTITUIÇÃO DE 1988

 

Esse período foi marcado pela centralidade da legislação infraconstitucional e por um Estado marcadamente liberal. A legislação civil era o grande pilar do sistema jurídico e o direito constitucional tinha por função precípua apenas a organização e ordenação do Estado.

 

Desse período, podemos assinalar algumas características:

 

- Entendia-se o sistema jurídico como um sistema completo (positivismo legalista);

 

- Regras e normas eram sinônimas;

 

- A decisão judicial tinha precipuamente caráter declarativo, embora não se negue a interpretação judicial;

 

- Adotavam-se critérios clássicos na solução dos conflitos de leis: anterioridade, especialidade e hierarquia. Vigorava um paradigma de superação do conflito de leis, no qual a adoção de um critério implicava excluir uma das fontes normativas em conflito; apenas uma fonte normativa podia prevalecer.

        

Em síntese, a tutela das relações jurídicas patrimoniais é o centro da preocupação jurídica, pois essa se funda no individualismo jurídico, na autonomia contratual e na baixa operatividade judicial.

 

2º CENÁRIO: PERÍODO QUE SUCEDE À EDIÇÃO DA CARTA CONSTITUCIONAL DE 1988

        

Nesse cenário, opera-se a passagem do Estado Liberal para o Estado Democrático de Direito – Estado Constitucional, e a supremacia da Constituição e seus valores assumem proeminência na ordem jurídica e na interpretação do Direito.

        

O art. 1º, inciso III, da Constituição da República aponta a dignidade humana como alicerce da ordem jurídica e três grandes mudanças se efetivam sob a égide do Estado Constitucional, indispensáveis à sua realização:

 

a) no terreno das fontes jurídicas;

 

b) na compreensão da interpretação jurídica e

 

c) na técnica legislativa.

 

a.1) toda norma era sinônimo de regra e os princípios eram fundamentos compreendidos para as normas, mas jamais normas! A teoria das normas passa a se articular em três grandes espécies: princípios, regras e postulados.

 

- princípios: ganham força normativa e influenciam o sistema como um todo;

 

- postulados: normas que visam disciplinar a aplicação de outras normas (proporcionalidade, razoabilidade, subsidiariedade, concordância prática e etc.)

 

- regras: técnica casuística da norma com fato determinado e sanção correspondente.

 

b.1) A atividade jurisdicional como atividade de reconstrução do sentido normativo das proposições jurídicas evolui para a separação entre texto e norma: o legislador outorga texto e não normas.

 

- da unidade entre texto e norma passa-se à separação de ambas e a função do juiz de declarativa transmuda-se em função criadora da norma para o caso concreto, exigindo maior argumentação jurídica como forma de manutenção da coerência e da racionalidade do discurso jurídico.

 

c.1) Quanto à técnica legislativa, avança-se da técnica legislativa da casuísta – fato e sanção -, para a casuística aberta com termos indeterminados com ou sem consequências jurídicas na própria proposição. Os exemplos são os princípios, os conceitos jurídicos indeterminados e as cláusulas gerais.

 

- Os conceitos jurídicos indeterminados são espécie normativa em que no suporte fático há termo indeterminado, mas com consequência jurídica legalmente prevista;

 

- As cláusulas gerais são espécies normativas em que no suporte fático há termo indeterminado, mas não há previsão de consequências jurídicas na própria proposição legal;

 

- As regras (casuística fechada) são técnicas casuísticas em que a norma contém o fato determinante e a sanção correspondente (CENTRALIDADE INFRACONSTITUCIONAL DOS CÓDIGOS);

 

- O controle da estabilidade, da integridade e da uniformidade do sistema é realizado pela argumentação jurídica.

 

2. DESENVOLVENDO OS DESAFIOS...

        

A ciência abandona a busca por verdades absolutas. A verdade é tida como algo factual, presente. É uma construção social delimitada no tempo. Há um aumento crescente de complexidade e fragmentação das relações sociais. Apresentam-se novas demandas para o Direito. Há o surgimento das novas tecnologias da informação e da comunicação, tendo como consequência os algoritmos – Lawrence Lassig (Code and other law of cyberspace);

        

A situação caracteriza-se pela crise da ideia de Direito como um sistema lógico-conceitual e pela crise da dogmática. Apresenta-se o desafio de como assegurar justiça e segurança em uma sociedade complexa, na qual nem mesmo o legislador acompanha o ritmo dos acontecimentos.

        

Os riscos do totalitarismo e a necessidade da proteção da esfera privada impõe nova reflexão sobre a questão da supremacia do interesse público. Por outro lado, há o risco de a supremacia do interesse público implicar supressão do interesse privado. Esse contexto representa uma ameaça à consagração do princípio da dignidade humana.

 

Novas perspectivas metodológicas

        

Como o método não assegura a verdade, deve ocorrer um pluralismo temático e metodológico (aqui compreendido como veículo que assegura o resultado; verdade por repetição), situação que é claramente observável na questão da interpretação.

        

Ocorre a revalorização da interpretação como atividade criativa e a necessidade de evitar o excesso de subjetividade. Há uma preocupação em assegurar a coerência e a racionalidade do discurso jurídico, não dando espaço para a arbitrariedade, o relativismo e o irracionalismo.

        

Por outro lado, ganha força a preocupação com a legitimidade do Direito e com a segurança. Para tanto, ocorre a valorização da argumentação jurídica como forma de assegurar coerência ao ordenamento e convencer os destinatários da norma jurídica. Aumenta a importância dos princípios, diante da impossibilidade de a lei prever todos os casos específicos numa sociedade caracterizada pela complexidade.  Nesse contexto, os princípios constitucionais ganham centralidade no sistema jurídico. Verifica-se o fim da clausura operacional entre direito público e o privado e a busca pela interdisciplinaridade ampla. O Direito redefine-se não como um objeto de conhecimento prévio, mas como experiência de elaboração contínua e realização permanente. É cada vez maior a preocupação com a argumentação e a estruturação do discurso jurídico, com vistas à segurança e à prospecção dos comportamentos. Estuda-se a psicologia comportamental e crítica-se a racionalidade estrita: como evitar que as limitações da racionalidade humana leve a erros de julgamento?

        

É possível que juízes sejam substituídos por computadores cujos algoritmos façam a análise prévia de comportamentos e deliberem acerca de, e.g., liberdade condicional de presos? Seria possível imaginar que os computadores, a partir da inserção de alguns dados, decidissem controvérsias com base em precedentes anteriores?

        

Enfim, a inteligência artificial atinge expectativas extremas, mas o Direito, além da racionalidade, tem como suporte a consciência e a cultura dos povos, de molde a que, mesmo em se tratando de uma ciência que seja de prévio conhecimento, o Direito, como experiência, se realiza e transforma permanentemente.

 

Personagem: O Juiz Hércules

        

A alusão ao Juiz Hércules se faz aqui não no sentido de buscar um paradigma ou modelo de julgador, mas para enfatizar o trabalho hercúleo de equilibrar as dicotomias que caracterizam o direito na contemporaneidade.

        

A complexa equação entre faticidade e validade do direito impõe ao juiz a incumbência de equilibrar a ordem e a isonomia formal, que se exige para a regulação de uma sociedade complexa, com a necessidade de legitimidade e aceitação racional das normas e das decisões judiciais pelos cidadãos.  Isso implica a necessidade de compreender a relação existente entre regras e princípios, para habilitar-se a aplicar e interpretar regras e princípios. O desafio é o de compreender e conciliar harmonicamente as dimensões principiológica e pragmática (consequencialista) do discurso jurídico em uma argumentação jurídica coerente. Trabalhar tanto com o raciocínio sistemático quanto com o raciocínio problemático, para valorizar a riqueza do caso concreto, sem ignorar a importância de manter a unidade do sistema, na perspectiva de equilibrar o micro e o macro. Outra exigência feita ao juiz é a de trabalhar de forma interdisciplinar, incorporando o conhecimento de outras áreas do saber (economia, sociologia, psicologia, matemática, estatística, informática, ciências, etc.), sem desfigurar a identidade e a racionalidade do discurso jurídico.  Compreender a relação entre passado e futuro para respeitar e dar continuidade ao passado quando necessário, mas também saber quando e como estabelecer rupturas (sentença como capítulo de romance em cadeia); em outras palavras: conciliar os efeitos presentes e os efeitos prospectivos da decisão, ainda mais em um mundo cada vez mais fragmentado e que muda tão rapidamente.  Exercitar razão e sensibilidade significa compreender que julgar não envolve apenas faculdades cognitivas, mas sensibilidade e alteridade para compreender o outro e as suas demandas. No cotejo entre  o indivíduo e a sociedade, no conflito entre interesse privado e interesse público, trata-se de equilibrar a solução da lide concreta com as repercussões sociais da decisão.

 

Personagem: O Judiciário

        

O cidadão tudo espera da justiça, daí a expectativa não de uma justiça ilimitada, mas de uma Justiça total: saber educar, conciliar, comunicar, guardar distância e estar próximo e não apenas interpretar e julgar. O Estado Social de Direito exige a intervenção pública como instrumento de promoção e de igualdade dos cidadãos, assumindo complexidades que conduzem a modificações do sistema político e do papel dos Poderes. Há uma notória insuficiência das garantias políticas e dos direitos humanos pela incapacidade do Legislativo e do Executivo de atuarem na sua promoção, provocando a inclusão do Judiciário nesse cenário em face das expectativas constitucionais.

        

Os juízes do modelo tradicional (weberiano) são portadores de saberes teóricos que os legitimam enquanto agentes estatais, em face da origem pela qual foram selecionados e entraram para o aparelho do Estado.  Essa legitimação não deriva de saberem como se faz, de possuírem técnica, mas da conscientização que a Magistratura deve ter do papel que exerce na Sociedade, atenta à educação ética e deontológica. A independência não significa autonomia absoluta, exibicionista e que se esgota na sua própria realização individual, mas se trata de independência enquanto garantia de inexistência de privilégios na aplicação da lei, ou seja, enquanto autonomia no desenvolvimento de uma função. O significado da independência do  Poder Judiciário, externa e internamente, deve ser objeto da formação deontológica do magistrado, cabendo papel pedagógico às Escolas Judiciais nessa perspectiva.  Outro desafio reside na tomada de consciência dos valores em jogo, conflitos possíveis entre esses valores e quais as margens abertas à intervenção desse juiz e qual a relação entre o sistema normativo, a realidade e a função jurisdicional.  A busca da segurança jurídica deve ser promovida através de novos instrumentos processuais, com vistas à realização da isonomia sob a lei. A existência de 100 milhões de ações em tramitação nos Tribunais do País impõe a busca por soluções extrajudiciais:  a) conciliação (sem desrespeito às normas imperativas e cogentes); b) arbitragem (soluções de grande impacto econômico); c) mediação (relações continuativas e busca da subjetividade).

 

3. A TEORIA DO DIÁLOGO DAS FONTES

        

Neste ambiente complexo e dinâmico em que repousa a nossa sociedade, o Direito, como a ciência responsável pela organização da [s] Sociedade e do Estado, exige do magistrado novos métodos na interpretação e aplicação do Direito, sob os valores e fundamentos da Constituição da República.

        

Ao largo da insuficiência dos métodos tradicionais para a solução dos conflitos entre normas em um ordenamento plural, convida a Profª Cláudia Lima Marques ao estudo da “teoria do diálogo das fontes”, cunhada e formulada pelo Prof. Erik Jaime, em seu curso de Haia.

        

Trata-se de um novo conceito para o conflito de leis no tempo: um conceito de aplicação simultânea e coerente de muitas leis ou fontes de direito privado, sob a luz (ou com os valores-guia) da Constituição Federal de 1988. Significa a aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas, especiais e gerais, com campos de aplicação convergentes e, em geral, divergentes, mas tudo iluminado pelos valores constitucionais e pelos direitos fundamentais.

        

Este método tem como objeto a necessidade de coordenação entre as leis no mesmo ordenamento, como exigência para um sistema jurídico eficiente e justo. Para a busca da coerência sistêmica e social reivindicada, inclusive, pelos novos diplomas legais. Chama-o, a Profª Lima Marques, de “coerência derivada ou restaurada” que, “em um momento posterior à descodificação (aqui entendida como a necessidade de modernização dos diplomas legais para uma sociedade pós-moderna), à tópica, e à microrrecodificação, procura uma eficiência não só HIERÁRQUICA, mas FUNCIONAL do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a evitar a antinomia, a incompatibilidade ou a não coerência.”

        

Diálogo porque há influências recíprocas; aplicação conjunta de duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso. Complementarmente ou subsidiariamente. Seja permitindo a opção pela fonte prevalecente ou mesmo a opção por uma das leis em conflito abstrato. Uma solução flexível ou aberta, de interpenetração, ou mesmo “a solução mais favorável ao mais fraco”.

        

Para nós da Justiça do Trabalho, uma Justiça Especial, de certo modo não há novidade, fomos precursores, embora não tivéssemos a consciência de que dialogássemos abertamente com as fontes formais de direito. Não olvidemos as normas dos artigos 8º, 769 e 889 da CLT. São normas de transporte, são normas de diálogo: da autonomia científica da disciplina para a coordenação com o sistema do qual se origina.

        

A Profª Lima Marques identifica três tipos de diálogo:

 

a) DIÁLOGO SISTEMÁTICO DE COERÊNCIA: Na aplicação simultânea das duas leis, uma lei pode servir de base conceitual para outra, especialmente se uma lei é geral e a outra especial; se uma é a lei central do sistema e a outra um microssistema específico, não completo materialmente, apenas com completude subjetiva de tutela de um grupo da sociedade. Exemplo: CDC e CLT;

 

b) DIÁLOGO SISTEMÁTICO DE COMPLEMENTARIDADE E SUBSIDIARIEDADE: na aplicação coordenada das duas leis, uma lei pode complementar a aplicação da outra, a depender de seu campo de aplicação no caso concreto, a indicar a aplicação complementar tanto de suas normas, quanto de seus princípios, no que couber, no que for necessário ou subsidiariamente;

 

c) DIÁLOGO DE COORDENAÇÃO E ADAPTAÇÃO SISTEMÁTICA: diálogo das influências recíprocas sistemáticas, como no caso de uma possível redefinição do campo de aplicação de uma lei (conceito de consumidor/conceito de empregado, de grupo econômico/de empresa). É a influência do sistema especial no geral ou do geral no especial.

 

Para o Prof.º Bruno Miragem (Diálogo das Fontes – do conflito à coordenação de normas do direito brasileiro: Eppur si muove: Diálogo das fontes como método de interpretação sistemática no Direito brasileiro. SP, RT, 2012) têm se levantado algumas objeções ao diálogo das fontes, assim identificadas:

 

a)  de que não se constitui em um método novo de interpretação e aplicação das leis, mas mera expressão do método sistemático;

 

b)  de que o método, ao promover a possibilidade de aplicação simultânea de mais de uma lei a um mesmo fato, dá excessiva liberdade ao intérprete, ofendendo os princípios da legalidade e da segurança jurídica;

 

c)     de que não possui aplicação geral, mas apenas às situações em que exista expressa previsão legal.

 

De outro lado, apresenta, outrossim, a refutação às objeções à respectiva teoria:

 

a) O método do diálogo das fontes não se preocupa apenas com a interpretação da norma, mas especialmente com o resultado de sua aplicação, e. g.:  método clássico – contradição entre normas; método do diálogo – complementaridade para assegurar coerência e unidade do ordenamento (inovação);

 

b) Quando se invoca a legalidade e a segurança, como óbice ao método, desvaloriza-se a interpretação jurídica, como se as normas possuíssem sentido unívoco e incontroverso e devessem ser tomadas individualmente, em desprestígio da visão sistemática;

 

c) Quando se alude à autorização expressa, olvida-se que a interpretação e a concreção de conceitos constantes da norma podem ter como critério o significado havido em outras leis, de modo que a identidade e a aplicação dos critérios pressupõem o caráter complementar entre as normas e a coerência e a unidade lógica do sistema sob os valores e os influxos da Constituição e dos direitos fundamentais nela inscritos.

 

 

Considerada a complexidade do pluralismo pós-moderno é preciso não esquecer os riscos da interpretação que escapa a uma lógica argumentativa, pois o método da teoria do diálogo das fontes possibilita a substituição da SUPERAÇÃO DOS PARADIGMAS pela CONVIVÊNCIA DOS PARADIGMAS.

 

Vamos a alguns desafios!

 

4. O DIÁLOGO DAS FONTES E O DIREITO MATERIAL

        

Segundo Mozart Victor Russomano, a lei trabalhista aplicável ao caso deve ser interpretada e aplicada não apenas dentro dos processos estritamente jurídicos de análise dos textos, mas, também, sob a influência do chamado critério sociológico.[4] Esse método nos revela os aspectos, econômicos, políticos e sociais que se escondem por detrás dos fenômenos jurídicos da vida trabalhista e não podem ficar esquecidos.

        

O código central é para os iguais (Código Civil), mas a CLT é para os desiguais, para a proteção do trabalhador, dependente economicamente, hipossuficiente e, portanto, vulnerável, daí a aplicação subsidiária quando não houver incompatibilidade.

        

Neste terreno, a teoria do diálogo das fontes tem perfeita aplicação na jurisdição do Direito material do trabalho, sob os mesmos fundamentos da relação Código do Consumidor/ Código Civil.

        

doutrina é de todo pertinente e é fundamental realçar este aspecto.

 

5. O DIÁLOGO DAS FONTES E O DIREITO PROCESSUAL

 

FUNDAMENTOS DA APLICAÇÃO DA TEORIA DO DIÁLOGO DAS FONTES NO PROCESSO DO TRABALHO:

        

Segundo o Prof. Peruano Mario Pasco, as partes na relação trabalhista são juridicamente desiguais. Ao empregador são conferidas as faculdades normativa, diretiva e sancionadora, cujo correlato, para o trabalhador, é o dever de cumprimento, obediência e disciplina. Embora civilmente iguais, são sensivelmente desiguais no âmbito jurídico por sua diferente posição funcional, fruto de uma necessidade social que é a de organizar a produção, o que requer uma relação verticalizada. No âmbito econômico, o patrão detém os meios de produção, enquanto que o operário só tem sua força de trabalho e, por meio dela, seu salário. A capacidade de um e outro enfrentar o litígio diz com a capacidade dos respectivos patrimônios.[5]

        

A desigualdade moral, psicológica ou subjetiva, que nasce da desigualdade econômica, recrudesce na desigualdade para a superação das dificuldades para litigar, pois se vigente a relação de emprego não há garantias legais de sustentação da vontade do trabalhador. Também há desigualdade quanto à capacidade probatória, já que o empregador concentra o poder patronal, melhores condições de pré-conceber a prova, enquanto que o empregado deve arrancá-la desse ambiente hostil, sujeito à pressão patronal.

 

A opção legislativa: subsidiariedade e supletividade; (art. 15 do CPC; arts. 769 e 889 da CLT).

        

IMPORTANTE DISTINÇÃO: Aplicação subsidiária como autêntica fonte normativa e não como elemento interpretativo; supletividade como ideia de suprimento de omissão legislativa, portanto como fonte normativa para institutos não regulados pela legislação específica. Subsidiariedade como fonte secundária a uma disciplina concretamente existente na legislação especial; supletividade para aplicação de normas para a regência de institutos simplesmente não considerados na legislação especial. Portanto, normas de transporte são fontes normativas complementares. A teoria trata do diálogo entre as normas pelo prisma da interpretação judicial.

 

Supletividade: Exemplo expresso no ordenamento. Omissão deliberada. (art. 1.046, § 2º do CPC e art. 1053 CC).

 

“Art. 1.046. Ao entrar em vigor este Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos processos pendentes, ficando revogada a Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973.

§1º. (...)

§ 2º. Permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código.

 

“Art. 1.053. A sociedade limitada rege-se, nas omissões deste Capítulo, pelas normas da sociedade simples.

Parágrafo único. O contrato social poderá prever a regência supletiva da sociedade limitada pelas normas da sociedade anônima.”

 

ALGUNS EXEMPLOS DE APLICAÇÃO:

 

a)  nas ações coletivas (ACP e CDC, direitos difusos, categoriais e individuais homogêneos);

 

b)  na desconsideração da personalidade jurídica;

 

c)  na estabilidade da jurisprudência nos tribunais;

 

d)  na liquidação de sentença;

 

e)  no cumprimento espontâneo da decisão;

 

f)  na execução.

 

6. O DIÁLOGO DAS FONTES E A REFORMA TRABALHISTA

        

O Direito e o processo do trabalho gozam de inegável autonomia científica. A teoria do diálogo das fontes proporciona a coordenação de  normas conflitantes no sistema jurídico e em função dos valores e princípios constitucionais, especialmente na realização e efetividade dos direitos fundamentais.

        

É imperioso ressaltar que o desenvolvimento desse diálogo deve observar um sentimento de progressividade. Ele não refreia a interpretação judicial que promove cada vez mais a autonomia da disciplina na qual se insere o conflito de interesses e nem a promoção dos valores e sentidos constitucionais que pairam sobre a apreensão do sentido da norma para o caso concreto.

        

O diálogo das fontes não assume e não quer assumir, pois não faria sentido interpretativo, que a norma conflitante promovesse a colonização ou a submissão da norma originária, pois assim estaríamos promovendo métodos hermenêuticos de superação ou derrogação de uma das normas, hipótese que, como já acentuado ao longo do trabalho, realmente se afasta do método do diálogo das fontes.

        

A coordenação entre normas é o traço distintivo. Mas esse traço visa à harmonia do sistema, à cooperação entre elas, como se realizassem um movimento flexível de adaptação para a promoção dos valores e princípios constitucionais a partir de um arcabouço infraconstitucional pertinente e concordante. Os conflitos se harmonizam a partir da necessidade de operacionalizar-se o sistema e dinamizá-lo, o que afasta a ideia de que se supere os fundamentos e a autonomia da disciplina que, digamos assim, busca o diálogo em outras fontes.

        

Assim é que se espera, como vimos na reforma do Código Civil, do Código de Processo Civil, que a interpretação encetada a partir do diálogo das fontes vise à ampliação das singularidades e particularidades da nossa disciplina, considerando a finalidade e o alcance social a que se destina a legislação trabalhista, observando desde sempre os fundamentos e princípios constitucionais.             

 

CONCLUSÃO

        

A teoria do diálogo das fontes como método de interpretação do sistema jurídico, além de superar as antinomias, proporciona a densificação das autonomias e dos conceitos fundamentais dos diversos ramos do direito através da cooperação, coordenação e complementaridade, mediante um elevado grau de flexibilização do sistema, sempre na perspectiva de afirmação dos valores constitucionais.  Pode servir à tutela dos vulneráveis.

        

O Direito e o Processo do Trabalho visam à tutela da pessoa do trabalhador em suas relações jurídicas patrimoniais e existenciais, no âmbito da sociedade e do mercado de trabalho, mas a partir dos fundamentos e objetivos da República (arts. 1º e 3º da Constituição Federal), da dignidade humana, da solidariedade social e da igualdade substancial, da erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais, preservando-se o mínimo existencial (arts 6º, 7º e 8º da Constituição da República), como expressão da tutela da pessoa do trabalhador.

        

O diálogo das fontes deve representar técnica de harmonização do sistema, a partir dos valores constitucionais e da dogmática construída pela CLT ao longo de sua história, pois sua justificativa axiológica é voltada para a busca do equacionamento jurídico das desigualdades e assimetrias, em esforço hermenêutico em favor da pessoa humana na sua condição de maior vulnerabilidade e dependência, pois sem o trabalho e sua proteção contra a exploração de qualquer espécie, não se pode esperar a efetivação da dignidade, da formação dos núcleos essenciais da sociedade – das famílias –, e nem a esperança de uma sociedade justa e, portanto, de futuro para nosso País.

 

 


[1] O presente artigo sintetiza Conferência proferida no III Fórum Nacional de Processo do Trabalho, realizado de 15 a 17 de junho de 2017, em Gramado-RS.

 

[2] Revista Brasileira de Direito Processual. vol. 28. 4º bimestre. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p. 118.

 

[3] A natureza do processo e a evolução do direito. Rio de Janeiro: Editora Nacional de Direito, 1956. p. 107.

 

[4] Comentários à Consolidação das Leis do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 43.

 

[5] Fundamentos do Direito Processual do Trabalho.  Editora LTr: São Paulo, 1997. pp. 26/28.

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Setembro/2017