TERCEIRIZAÇÃO DA ATIVIDADE FIM – UMA NOVA REALIDADE?

 

 

 

RUBIANE SOLANGE GASSEN ASSIS

Juíza do Trabalho Substituta – TRT da 4ª Região

 

 

 

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO – 2. O FENÔMENO E SUAS DUAS FACES – 3. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA – 4. A INCONSTITUCIONALIDADE DA TERCEIRIZAÇÃO DA ATIVIDADE-FIM – 5. CONCLUSÃO – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS     

 

 

 

1. INTRODUÇÃO

 

As alterações legislativas recentemente praticadas no ordenamento jurídico pátrio possibilitam a ocorrência de alterações substanciais no âmbito das relações de emprego.

 

Entre as diversas alterações promovidas pela nova legislação, uma delas se apresenta com maior destaque, tendo em vista as graves consequências que pode determinar em relação aos direitos dos trabalhadores, seja no que tange ao adimplemento das parcelas trabalhistas devidas pelo empregador, seja no fornecimento de condições e ambientes seguros de trabalho: a possibilidade de terceirização da atividade-fim.

 

A ausência de legislação específica para regulação dos contratos de terceirização de serviços e a crescente necessidade de busca de alternativas para a maior competitividade das empresas são apresentadas como justificativas para a edição de dispositivos legais específicos a esse respeito. Todavia, o teor dessa legislação possibilita consequências nefastas.

 

Para que se possa melhor compreender as consequências desse fenômeno e as alternativas que o ordenamento jurídico apresenta para a solução de conflitos ocorridos em decorrência da sua prática, passa-se à análise da sua definição, dos dispositivos legais que o preveem e a evolução da elaboração desses e, por fim, o cotejo entre esses e os termos da Constituição da República.

 

2. O FENÔMENO E SUAS DUAS FACES

 

A participação de terceiros em qualquer relação de ordem material se apresenta, em regra, como situação excepcional. Já no sistema de produção, a regra é a participação constante de três elementos, quais sejam, o trabalhador (que produz o bem de consumo), o consumidor e, entre esses, o empresário (VIANA, in Para entender a Terceirização, 2017, p.14).

 

Todavia, a terceirização, como ressaltado por Viana, focaliza “outro fenômeno, circunstancial e não estrutural, periférico e não central, embora também importante” (in Para entender a Terceirização, 2017, p.14).

 

A terceirização não estrutural, conforme Garcia, “pode ser entendida como a transferência de certas atividades do tomador de serviços, passando a ser exercidas por empresas distintas” (in Terceirização de Serviços e Direitos Sociais Trabalhistas, “Terceirização de Serviços na Administração Pública: Limitações e Consequências Jurídicas”, 2017, p. 25).

 

Ainda de acordo com Viana, o fenômeno da terceirização pode ser verificado em dois aspectos, podendo ser definida, em atenção a esses, como interna e externa.

 

A terceirização interna, permite que a empresa traga para seu âmbito interno trabalhadores que não lhe são vinculados, ao passo que terceirização externa possibilita à empresa a externalização e a transferência de trabalhadores e também de parte ou de partes de seu ciclo produtivo.

 

Como terceirização interna, temos o exemplo da contratação de empresas especializadas em atividades de limpeza e de vigilância, já há tempo muito praticada, inclusive junto à Administração Pública.

 

Destaca-se o esclarecimento que Viana apresenta a respeito das duas faces desse fenômeno:

 

A terceirização externa lembra o trabalho por conta própria. Uma empresa contrata a outra, mas o que lhe interessa é o produto final. Por isso, só ao término da produção passa a ter propriedade sobre ele.

Já a terceirização interna se articula com o trabalho por conta alheia. A empresa tomadora vai se apropriando do trabalho dos terceirizados à proporção em que eles o executam. Aproveita a força de trabalho do mesmo modo que faria ser os tivesse contratado como empregados seus” (in Para entender a Terceirização, 2017, p.20).

 

Historicamente, constata-se que a prática de ambas as formas de terceirização tinha como intuito primordial a possibilidade de dedicação mais intensa da empresa tomadora dos serviços às suas atividades principais.

 

Em relação à terceirização externa, destaca-se a prática da indústria automobilística, a qual, segundo Viana, tinha

 

...a ideia era repartir renda, transformando (praticamente) todo homem em trabalhador, todo trabalhador em empregado e todo o empregado em consumidor, e assim realimentando o ciclo. (...)

A terceirização externa era, assim, não um modo de dividir e precarizar (ou dividir para precarizar), mas uma necessidade imposta pela complexidade crescente do produto e pelas exigências também maiores do consumo. Apenas já não era viável – por razões técnicas ou análogas – reunir toda a fabricação de automóvel num único lugar, do mesmo modo que nunca foi possível produzir todos os nossos bens de consumo numa única fábrica (in Para entender a Terceirização, 2017, p.52).

 

Todavia, na atualidade, em ambas as formas de terceirização, é possível verificar situação de precarização dos direitos dos trabalhadores. Essa circunstância, como se verá a seguir, respalda o entendimento de que a legislação ordinária que permite sua adoção de forma indiscriminada afronta diretamente os termos da Constituição da República.

 

3. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA

 

Em que pese a prática de contratos de terceirização de serviços venha sendo adotada já há longo tempo, não havia no ordenamento jurídico previsão legal expressa estabelecendo requisitos necessários à validade dessa contratação e tampouco formas e critérios para a responsabilização dos contratantes. Encontrava-se no ordenamento jurídico apenas a legislação correlata ao trabalho temporário (Lei 6.019/74) e à atividade de vigilância (Lei 7.102/83).

 

Em face da ausência de dispositivos legais específicos, a jurisprudência, diante do exame de litígios decorrentes dessa modalidade contratual, estabeleceu critérios, em atenção às disposições da legislação civil e da legislação trabalhista vigentes, que passaram a ser observados quando esses contratos eram submetidos à apreciação do Poder Judiciário.

 

Nesse particular, destaca-se o teor da Súmula 331 do TST, nos seguintes termos:

 

CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011 

 

I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). 

II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).

III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. 

IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.

V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral

 

Recentemente, no entanto, houve intensa atividade legislativa no âmbito das relações de trabalho e também especificamente em relação aos contratos de terceirização de serviços.

 

Em que pese já em 1998 tenha sido encaminhado projeto de lei no intuito de regular a terceirização de serviços, nos anos 2015 a 2017 vários diplomas legais buscaram abordar e regular essa atividade.

 

Simultaneamente à tramitação do Projeto de Lei 4.302/1998, que deu ensejo a Lei 13.429/2017, tramitou no Senado Federal o Projeto de Lei Complementar 30/2015, que acabou sendo rechaçado.

 

Esse projeto, como destaca Santos, previa a possibilidade de responsabilização solidária da empresa contratante, caso essa não fiscalizasse os pagamentos aos empregados pelas empresa terceirizada, bem como a necessidade de que fosse retido o percentual de 4% do valor do contrato de prestação de serviços, como forma de garantia do cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias dos trabalhadores. Previa, ainda, que, na hipótese de substituição da empresa prestadora de serviços com admissão dos empregados contratados pela antiga empresa terceirizada, os salários desses deveriam ser mantidos nos mesmos parâmetros (in A Nova Lei da Terceirização – Lei n. 13.429/2017, Revista Eletrônica, Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região).

 

Outras previsões que merecem destaque nesse projeto dizem com a possibilidade de acesso do trabalhador contratado pela empresa terceirizada a restaurantes, transporte e atendimento ambulatorial oferecido pela empresa tomadora de serviços e com a situação de serem os empregados da empresa terceirizada representados pelo mesmo sindicato dos empregados da empresa tomadora de serviços.

 

As disposições contidas nesse projeto se apresentavam com caráter mais benéfico aos trabalhadores em relação àquelas contidas no projeto de lei que deu ensejo à nova Lei da Terceirização

 

A Lei da Terceirização (Lei n. 13429/2017), alterando o disposto na Lei do Trabalho Temporário, estabelece expressamente que:

 

"Art. 1º As relações de trabalho na empresa de trabalho temporário, na empresa de prestação de serviços e nas respectivas tomadoras de serviço e contratante regem-se por esta Lei." (NR)

"Art. 2º Trabalho temporário é aquele prestado por pessoa física contratada por uma empresa de trabalho temporário que a coloca à disposição de uma empresa tomadora de serviços, para atender à necessidade de substituição transitória de pessoal permanente ou à demanda complementar de serviços.

(...)

§ 3º O Contrato de Trabalho temporário pode versar sobre o desenvolvimento de atividades-meio e atividades-fim a serem executadas na empresa tomadora de serviços." (NR)

(...)

"Art. 4º-A. Empresa prestadora de serviços a terceiros é a pessoa jurídica de direito privado destinada a prestar à contratante serviços determinados e específicos.

§ 1º A empresa prestadora de serviços contrata, remunera e dirige o trabalho realizado por seus trabalhadores, ou subcontrata outras empresas para realização desses serviços.

§ 2º Não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante."

(...)

"Art. 5º-A. Contratante é a pessoa física ou jurídica que celebra contrato com empresa de prestação de serviços determinados e específicos.

§ 1º É vedada à contratante a utilização dos trabalhadores em atividades distintas daquelas que foram objeto do contrato com a empresa prestadora de serviços.

§ 2º Os serviços contratados poderão ser executados nas instalações físicas da empresa contratante ou em outro local, de comum acordo entre as partes.

§ 3º É responsabilidade da contratante garantir as condições de segurança, higiene e salubridade dos trabalhadores, quando o trabalho for realizado em suas dependências ou local previamente convencionado em contrato.

§ 4º A contratante poderá estender ao trabalhador da empresa de prestação de serviços o mesmo atendimento médico, ambulatorial e de refeição destinado aos seus empregados, existente nas dependências da contratante, ou local por ela designado.

§ 5º A empresa contratante é subsidiariamente responsável pelas obrigações trabalhistas referentes ao período em que ocorrer a prestação de serviços, e o recolhimento das contribuições previdenciárias observará o disposto no art. 31 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.” (grifou-se).

 

De forma diversa ao que estabelecia o Projeto de Lei em trâmite no Senado Federal, a nova Lei da Terceirização prevê a responsabilização subsidiária da empresa tomadora dos serviços em relação às obrigações trabalhistas e previdenciárias da empresa prestadora desses serviços. Prevê, ainda, a faculdade da empresa tomadora de serviços em possibilitar o acesso dos trabalhadores terceirizados a atendimento médico, ambulatorial e de refeição que alcança aos seus empregados. Esse diploma legal prevê, ainda, que os serviços prestados pela empresa terceirizada serão determinados e específicos.

 

Em atenção ao teor desses dispositivos, notadamente àquele que traz expressa previsão de que os serviços a serem prestados pela empresa terceirizada serão determinados e específicos e àquele que estabelece apenas expressamente em relação aos contratos de trabalho temporário a possibilidade de realização de contratação em relação à atividade-fim da empresa, doutrinadores sustentaram que o novo diploma legal não autorizaria a terceirização da atividade-fim.

 

Nesse particular, Viana, ressalta que “O mais importante, porém, como nota Manoel Carlos Toledo Filho, é que a lei não autoriza a terceirização nas atividades-fim. Só o faz em relação ao trabalho temporário, o que não é novidade, já que sempre se entendeu assim” (in Para entender a Terceirização, 2017, p.90).

 

Nesse mesmo sentido, sustenta Pereira que

 

Como já mencionado, incluir via interpretação aquilo que deixou de constar expressamente no texto aprovado e sancionado, que é a possibilidade de contratação de prestação de serviços tanto em atividade meio como em atividade fim, referidas apenas no regime de trabalho temporário, extrapola essa atividade, na medida que substitui a tarefa do Legislativo. Reforça tal posicionamento a previsão de que a contratação de prestação de serviços a terceiros pressupõe determinação e especificidade.  Não é possível extrair da lei autorização para que essa contratação possa ocorrer de forma ampla e sem limites. Os serviços próprios dos empreendimentos, aqueles que os acompanham durante toda a sua existência são realizados com regularidade, definitivamente não estão inseridos na nova modalidade contratual(in A inconstitucionalidade da Liberação Generalizada da Terceirização. Interpretação da Lei 13.429, de 31.3.2017, Terceirização de Serviços e Direitos Sociais Trabalhistas, LTr, 2017, p. 96).

 

Todavia, em que pesem tais argumentos, seguindo a recente evolução legislativa, é promulgada a Lei 13.467/2017, a qual, em relação aos dispositivos legais acima transcritos, estabelece expressamente que

 

Art. 2o  A Lei no 6.019, de 3 de janeiro de 1974, passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 4o-A.  Considera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução.

...........................................................................” (NR)

“Art. 4o-C.  São asseguradas aos empregados da empresa prestadora de serviços a que se refere o art. 4o-A desta Lei, quando e enquanto os serviços, que podem ser de qualquer uma das atividades da contratante, forem executados nas dependências da tomadora, as mesmas condições:

I - relativas a:

a) alimentação garantida aos empregados da contratante, quando oferecida em refeitórios;

b) direito de utilizar os serviços de transporte;

c) atendimento médico ou ambulatorial existente nas dependências da contratante ou local por ela designado;

d) treinamento adequado, fornecido pela contratada, quando a atividade o exigir.

II - sanitárias, de medidas de proteção à saúde e de segurança no trabalho e de instalações adequadas à prestação do serviço.

§ 1o  Contratante e contratada poderão estabelecer, se assim entenderem, que os empregados da contratada farão jus a salário equivalente ao pago aos empregados da contratante, além de outros direitos não previstos neste artigo.

§ 2o  Nos contratos que impliquem mobilização de empregados da contratada em número igual ou superior a 20% (vinte por cento) dos empregados da contratante, esta poderá disponibilizar aos empregados da contratada os serviços de alimentação e atendimento ambulatorial em outros locais apropriados e com igual padrão de atendimento, com vistas a manter o pleno funcionamento dos serviços existentes.”

“Art. 5o-A.  Contratante é a pessoa física ou jurídica que celebra contrato com empresa de prestação de serviços relacionados a quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal...........................................................................” (NR)

“Art. 5o-C.  Não pode figurar como contratada, nos termos do  art. 4o-A desta Lei, a pessoa jurídica cujos titulares ou sócios tenham, nos últimos dezoito meses, prestado serviços à contratante na qualidade de empregado ou trabalhador sem vínculo empregatício, exceto se os referidos titulares ou sócios forem aposentados.

“Art. 5o-D.  O empregado que for demitido não poderá prestar serviços para esta mesma empresa na qualidade de empregado de empresa prestadora de serviços antes do decurso de prazo de dezoito meses, contados a partir da demissão do empregado.” (grifou-se).

 

O teor da Lei 13.467/2016 inviabiliza a consideração acerca da ausência de autorização legal para a terceirização da atividade-fim das empresas contratantes.

 

A nova legislação estabelece a obrigatoriedade de concessão aos empregados da empresa terceirizada de idênticas condições concedidas aos empregados da empresa tomadora de serviços em relação à alimentação, atendimento médico ou ambulatorial, direito de utilizar serviços de transporte e treinamento adequado, quando e enquanto os serviços forem prestados nas dependências desta.

 

Essa legislação estabelece, ainda, período de dezoito meses no qual antigos empregados ou prestadores de serviços terceirizados não poderão prestar serviços na condição de empresas contratadas – fixando uma espécie de quarentena para os contratos de terceirização de serviços.

 

Consoante leciona Marques de Lima,

 

“Os arts. 5º-C e 5º-D criam uma quarentena para o ex-empregado da contratante, para evitar a substituição de empregados por terceirizados. Assim, não poderá ser contratada a empresa prestadora cujos sócios hajam sido empregados da contratante nos dezoito meses anteriores, salvo se aposentados; e, não pode prestar serviços como terceirizado o ex-empregado da tomadora demitido nos últimos dezoito meses. Ou seja, o indivíduo não pode ser demitido para retornar em seguida como terceirizado ou como sócio da empresa contratada. No entanto, se a rescisão contratual houver ocorrido por acordo ou a pedido do empregado não se aplica a quarentena.” (in Reforma Trabalhista Entenda Ponto por Ponto, São Paulo, LTr, 2017, p. 172, grifou-se).

 

A possibilidade de contratação, inclusive nesse período de quarentena, na hipótese de extinção do contrato de emprego por acordo ou a pedido do empregado, no entanto, viabiliza que, na prática das relações laborais, muitos vínculos de emprego sejam rompidos com o intuito de se ter iniciada uma nova relação mediante a formalização de contrato de terceirização de serviços.

 

Todavia, em que pese a expressa autorização legal quanto à terceirização da atividade-fim da empresa tomadora de serviços, faz-se necessário ponderar se esses dispositivos legais guardam consonância com o disposto na Constituição da República.

 

4. A INCONSTITUCIONALIDADE DA TERCEIRIZAÇÃO DA ATIVIDADE-FIM

 

De forma similar ao que ocorre em relação a outros dispositivos previstos na Lei da Reforma Trabalhista, muitos autores têm sustentado a inconstitucionalidade das normas que estabelecem expressamente a possibilidade de terceirização da atividade-fim das empresas.

 

As consequências nefastas geradas por esse fenômeno são apontadas como elementos frontalmente contrários aos dispositivos constitucionais relativos ao trabalho e à função social da propriedade.

 

Segundo Delgado e Amorim,

 

A prática da terceirização na atividade-fim esvazia a dimensão comunitária da empresa, pois a radicalização desse mecanismo pode viabilizar a extrema figura da empresa sem empregados, que terceiriza todas as suas atividades, eximindo-se, por absoluta liberalidade, de inúmeras responsabilidades sociais, trabalhistas, previdenciárias e tributárias(in A Inconstitucionalidade Da Terceirização Na Atividade-Fim: O Valor Social Da Livre Iniciativa e a Função Social Da Empresa, Terceirização de serviços e Direitos Sociais Trabalhistas, p. 15).

 

Ainda segundo esses autores, a terceirização da atividade-fim possibilita que a empresa se exima de participar de uma série de políticas sociais que são constitucionalmente asseguradas, a exemplo da política social de inclusão de pessoas com deficiência, política social de inserção e qualificação do jovem trabalhador no mercado de trabalho e do programa do salário-educação, bem como de realizar recolhimentos para fins de financiamento da previdência social e para o FGTS.

 

Outra grave consequência da prática da terceirização irrestrita diz com a destruição da forma de união dos trabalhadores na busca de melhores condições de trabalho, que foi historicamente possibilita pela reunião desses junto às máquinas mantidas pelas fábricas, já na época da Revolução Industrial.

 

Viana, ao tratar a respeito dos laços firmados entre os trabalhadores que passaram a laborar em um mesmo ambiente, leciona que

 

“Mas como tudo tem seu oposto, a fábrica também ensinou aos homens como resistir a ela, ainda que dentro dela. Sofrendo as mesas dores, e sonhando os mesmos sonhos, cada trabalhador se via no outro, como num espelho. E assim, pouco a pouco, os mesmos indivíduos que antes se juntavam na aldeia, e que na cidade se haviam atomizado, agora se reuniam de novo, mas de outros modos, por outras razões e com novos propósitos. Como notou Tocqueville, os laços profissionais se revelariam ainda mais fortes que os de família” (in Para entender a Terceirização, 2017, p.26).

 

Os contratos de terceirização, mormente da atividade-fim da empresa contratante, permitem a desagregação dos trabalhadores, que passam a não se reconhecer como integrantes de um mesmo grupo, principalmente tendo em vista que não são mais representados pela mesma entidade sindical.

 

Novamente merecem destaque as lições de Viana ao abordar as consequências da terceirização nas faces interna e externa:

 

“Quanto externa, ela fragmenta cada empresa em múltiplas ‘parceiras’, espalhando também os trabalhadores – mas dessa vez sem os riscos de antes, pois as novas tecnologias viabilizam o controle a distância. É assim que a empresa consegue produzir sem reunir.

Quando interna, divide em cada empresa os trabalhadores, opondo terceirizados e não terceirizados, na medida e que uns e outros ora se invejam, ora se temem ou se desprezam, dependendo da posição que eventualmente ocupam – degradando o próprio grupo, enquanto classe. Afinal, o empregado efetivo de hoje pode se tornar o terceirizado de amanhã, e assim ambos disputam – ao menos em potência – o bem valioso e escasso que é o emprego mais seguro e valorizado socialmente. É desse modo que a empresa consegue reunir sem unir” (in Para entender a Terceirização, 2017, p.34).

 

O exame das consequências que esse fenômeno possibilita em confronto com os dispositivos constitucionais correlatos à relação de emprego e à função social da empresa permite a consideração de que os dispositivos legais que autorizam irrestritamente a terceirização de toda e qualquer atividade da empresa tomadora de serviços não têm respaldo na Constituição da República.

 

Merecem destaque, nesse aspecto, as lições de Delgado e Amorim,

 

A leitura integrada das regras constitucionais que regular a proteção ao regime de emprego (arts. 7º a 11), e que regulam a contratação de serviços na atividade-meio (arts. 37, XXI, e art. 170, §1º, III) conduzem à conclusão de que a terceirização, por sua repercussão restritiva ao emprego direto com o beneficiário final da mão de obra, regime este socialmente mais protegido, somente se legitima, excepcionalmente, na medida indispensável à promoção daquelas finalidades gerenciais, tornando-se ilegítima a sua prática além dessa medida, ou seja, na atividade-fim empresarial.

Nesse espaço da atividade-fim, a Constituição reserva à empresa a função social de promover emprego direto com trabalhador, com a máxima proteção social, tendo em conta a dupla qualidade protetiva desse regime de emprego: uma proteção temporal, que remete à pretensão de máxima continuidade do vínculo de trabalho, e uma proteção espacial, de garantia de integração do trabalhador à vida da empresa.

(...)

E por impor essas restrições protetivas, a terceirização é o mecanismo que a Constituição reserva apenas excepcionalmente ao espaço da atividade-meio da empresa, como um mecanismo gerencial voltado a viabilizar que o empreendimento possa se dedicar à sua atividade finalística, para nela promover o emprego direto e maximamente protegido” (in A Inconstitucionalidade Da Terceirização Na Atividade-Fim: O Valor Social Da Livre Iniciativa E A Função Social Da Empresa, Terceirização de serviços e Direitos Sociais Trabalhistas, págs. 13-14).

 

A Constituição da República, ao estabelecer a função social da propriedade como um dos princípios constitucionais vinculados à ordem econômica, confere à propriedade – e, por conseguinte, também à empresa privada – a função de promover a justiça social, como forma de afirmação da livre iniciativa e também com geração de emprego.

 

A edição de dispositivos legais que possibilitam o desempenho da atividade econômica que pressupõe a atividade de trabalhadores contínuos para sua consecução sem a manutenção de qualquer vínculo de emprego, por óbvio, vem em afronta a esse princípio e aos dispositivos constitucionais a ele correlatos.

 

Ainda, segundo Delgado e Amorim,

 

Assim é que o contrato de terceirização da atividade-fim da empresa, ao reduzir o padrão de proteção social do trabalhador, para afirmação do interesse meramente individual e egoístico da empresa, constitui instrumento de violação de interesses constitucionais metaindividuais dos trabalhadores, ofensivo à sua dignidade humana, afrontando todo o sistema de normas imperativas e protetivas do trabalho humano.

Esse raciocínio encontra amparo no art. 2035, parágrafo único, do Código Civil, que condiciona a validade do conteúdo contratual à observância de normas imperativas:

Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos da ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade dos contratos. (Grifos acrescidos). (in A Inconstitucionalidade Da Terceirização Na Atividade-Fim: O Valor Social Da Livre Iniciativa E A Função Social Da Empresa, Terceirização de serviços e Direitos Sociais Trabalhistas, p. 16).

 

Observados os termos dos artigos 5º, inciso XXIII, 7º, 170, inciso III, e 186 da Constituição da República e as consequências que a terceirização determina, faz-se possível, portanto, a consideração de que autorização legal para a terceirização da atividade-fim não tem respaldo constitucional.

 

5. CONCLUSÃO

 

Do exame das ponderações lançadas na doutrina, em atenção aos termos da Constituição da República e da legislação infraconstitucional, é possível a consideração de que, embora a terceirização da atividade-fim seja uma nova realidade em diploma legal ordinário, não está constitucionalmente respaldada.

 

Tal circunstância possibilita que o Poder Judiciário, quando instado a resolver conflitos decorrentes dessa nova modalidade de contratação, venha a obstar a ocorrência das nefastas e diversas consequências que esse fenômeno pretende acarretar.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BRASIL, Lei n. 13.367, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13467.htm>. Acesso em: 02 outubro 2017.

 

BRASIL, Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017. Altera dispositivos da Lei no 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13429.htm>. Acesso em: 02 outubro 2017.

 

BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. Súmula 331. Disponível em: http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_301_350.html>. Acesso em 02 outubro 2017.

 

DELGADO, Gabriela Neves; AMORIM, Helder Santos. A Inconstitucionalidade Da Terceirização Na Atividade-Fim: O Valor Social Da Livre Iniciativa e a Função Social da Empresa. Terceirização de serviços e Direitos Sociais Trabalhistas. São Paulo: LTr, 2017.

 

GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Terceirização de Serviços na Administração Pública: Limitações e Consequências Jurídicas. Terceirização de Serviços e Direitos Sociais Trabalhistas. São Paulo: LTr, 2017.

 

MARQUES DE LIMA, Franciso Meton/Francisco Péricles Rodrigues. Reforma Trabalhista Entenda Ponto por Ponto.  São Paulo: LTr, 2017.

 

PEREIRA, Ricardo José Macêdo de Britto. A inconstitucionalidade da Liberação Generalizada da Terceirização. Interpretação da Lei 13.429, de 31.3.2017. Terceirização de Serviços e Direitos Sociais Trabalhistas. São Paulo: LTr, 2017.

 

SANTOS, Enoque Ribeiro dos. A Nova Lei da Terceirização – Lei n. 13.429/2017. Revista Eletrônica, Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, 2017, p. 51-59.

 

VIANA, Márcio Túlio. Para entender a Terceirização. São Paulo: LTr, 2017.

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Novembro/2017