QUESTÕES SOBRE A PERMANÊNCIA DA INTEGRAÇÃO DAS HORAS IN ITINERE À  JORNADA NORMAL DE TRABALHO

 

 

 

GUSTAVO SEFERIAN SCHEFFER MACHADO

Professor e Advogado Trabalhista.

 

 

 

Trouxe a Lei n. 13.467/2017, que institui a última e mais grave contrarreforma trabalhista em nosso ordenamento jurídico, uma série de impactos ao instituto das horas in itinere. Construído historicamente e consagrado de início no âmbito jurisprudencial, com a S. 90, do TST, de 1978, foi posteriormente firmado em lei, com a inclusão do § 2o do art. 58, da CLT, pela Lei n. 10.243/2001, tendo o atual movimento patronal em menção alterado sua redação original, bem como revogado seu § 3o, que fora inserido no texto Consolidado pela Lei Complementar n. 123/2006. Convém, pois, enfrentar os dois pontos alterados, conduzindo um exercício jurídico crítico e pró-trabalhadoras e trabalhadores, não sem antes um introito conjuntural.

 

Não se estranha o temário do transporte ter despontado como elemento marcante na contrarreforma trabalhista. Fosse já bastante os anúncios proclamados pelo arauto do capital Ives Gandra Martins Filho, logo após sua posse como Presidente do TST, reclamando a necessidade de rever a consideração do deslocamento como tempo de trabalho para fins de infortunística, é notável que a luta pelo Direito à Cidade, que passa pelas possibilidades de transporte e efetivação da garantia pública do mesmo, assume papel central nos enfrentamentos sociais por melhores condições    de vida, gozo de direitos e ampliação dos tempos livres na sociedade contemporânea. O ascenso de Junho de 2013 e a eclosão de novos atores sociais como o MTST não nos deixa mentir. O tema, por certo, se entrelaça dialeticamente com o das horas in itinere, sendo a disputa por hegemonia quanto à determinação da natureza deste tempo despendido pelas trabalhadoras e trabalhadores no deslocamento para o labor um certame fundamental na luta de classes em nossos tempos, denotando que as pautas reformistas por transporte público e gratuito têm a expressão de sua contraface também na ofensiva burguesa impressa na Lei n. 13.467/2017. Nesse contexto político, são as alterações colocadas no § 2o do art. 58, da CLT, as que demandam maior parte de nossas atenções e enfrentamentos político-teóricos.

 

Destacamos como primeiro ponto de resistência, seguindo algum formalismo jurídico, a inconstitucionalidade flagrante da nova redação do parágrafo em menção. O legislador-empresarial, em arroubo ficcional, ousou definir a natureza do “tempo despendido pelo entregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno” como não sendo de “tempo à disposição do empregador”, pelo que “não será computado na jornada de trabalho”. Como se pudesse, ao seu bel prazer,   por ato normativo, flexionar o que é a realidade dos fatos. Trata-se de manifestação de violência expressa no discurso jurídico que se repete em outros aspectos da contrarreforma, a exemplo do trato da aberrante “extinção” por força de lei dos efeitos deletérios à saúde, higiene e segurança do trabalhador pela supressão do intervalo intrajornada e ampliação do tempo de trabalho (art. 611-B, parágrafo único, da CLT). Como se isso fosse possível!

 

Aqui nos amparamos em Marx – ainda jovem e contaminado por alguma marca jusnaturalista, mesmo que a essa direcione olhar profundamente crítico – para afirmar que “a lei não está dispensada do dever universal de dizer a verdade”. Não pode se negar uma condição concreta – qual seja, o fato de que quem trabalha está à disposição do empregador no transporte a local de difícil acesso ou não servido de transporte público, seja o transporte custeado ou não pelo obreiro (S. 320, TST) – por meio de simples sustentação discursiva. Reputa uma condição distorcida e autonomiza-se frente ao concreto, passando a afigurar-se a norma não só como inconstitucional, mas também incompatível sistemicamente com o texto consolidado, haja vista o trato discriminatório de trabalhos de naturezas distintas afrontar a dicção dos arts. 7o, XXXII, da Constituição Federal e 3o, parágrafo único, da CLT, cujo imperativo normativo deve prevalecer diante de sua proeminência topológica frente ao § 2o do art. 58, Consolidado, e da indispensabilidade de observância do Princípio da Proteção.

 

Talvez uma leitura reducionista da temática não nos desse guarda, mas a compreensão materialista-dialética do processo do trabalho atende à perfeição nossas intencionalidades. A lógica da divisão social do trabalho – imperativo da socialização do trabalho e cuja instrumentalização, em nossos tempos, se dá em função do capital – comporta clivagens na projeção externa do labor. A cristalização trabalho dos sujeitos insertos nessa condição de divisão assume qualidades distintas, conferindo qualidades também distintas aos objetos de trabalho aos quais se projetam. Isso em razão do trabalho, concretamente, ser diferente. O trabalho abstrato, porém, é o mesmo. Todavia, cada processo trabalho, na sua acepção concreta, não pode ser escandido como sendo “intelectual”, “manual” ou “técnico”. Nenhuma atividade de trabalho é exclusivamente marcada por uma dessas características ou adjetivos. E é no bojo destes processos de trabalho em-si – todos eles, dos mais simples aos mais sofisticados – que notamos distinções, em momentos diversos, em que há prevalências intelectuais, manuais e técnicas. Ou seja, todo trabalho é intelectual, manual ou técnico, prevalecendo em cada momento do processo uma ou outra destas facetas. Há, assim, trabalho – ou seja, um colocar-se à disposição do empregador – no transporte para o trabalho quando os meios de locomoção são conferidos pela patronal ou não. Ocorre que no primeiro dos casos a constatação da disposição mostra-se mais explícita.

 

Levado isso em conta, e compreendendo que o texto constitucional estipula que “a duração do trabalho normal não” pode ser “superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais” – em seu art. 7o, XIII –, não há como desconsiderar qualquer espécie de atividade laboral no cômputo do tempo de trabalho, donde a restrição que se pretende impor com a nova redação do § 2o do art. 58, da CLT, também nesse inciso constitucional encontra barreira de aplicabilidade.

 

Tomemos para ilustração um exemplo de situação explícita do quanto essas atividades importam em típica atividade laboral à disposição do empregador: quando o empregador confere às suas empregadas e empregados transporte fretado, é certo que apenas colegas de trabalho estarão no veículo (seja ele qual for). Também por certo, diante dessa condição, trabalhadoras e trabalhadores que deste meio de transporte usufruam não poderão gozar plenamente das suas faculdades subjetivas, expressivas e críticas enquanto lá estiverem. Não gozarão, na mesma plenitude, da autonomia e liberdade que têm no seio do transporte particular ou público. Não poderão falar do “porre” que tomaram no dia anterior, da noite mal dormida por conta de um encontro amoroso, do voto lançado nas urnas ao candidato que não foi financiado pelo empregador, dos planos futuros de ter um filho, ou outros anseios colidentes com a perenização esperada – mas nunca fomentada – pelo empregador no posto de trabalho. Não poderão falar mal do chefe, fazer chacota do supervisor, xingar a empresa, reclamar do salário, ou comentar da assembleia do sindicato. Mais grave: os assuntos invariavelmente serão os concernentes às rotinas de trabalho, quando não    já adiantando a dinâmica do dia, fundamentalmente com seus superiores hierárquicos, haja vista que estes também por certo poderão gozar – e a experiência prática mostra que gozam – de tal transporte. Acaba, pois, servindo não só à socialização necessária das relações, indispensável para   o azeitado funcionamento empresarial, como também de interstício de planejamento das atividades diárias, haja vista a castração das liberdades impostas pelo espaço de controle – e lembremos que não há distinção entre os espaços em que o labor é empenhado, na forma do art. 6o, da CLT – fornecido pelo empregador. Tudo isso a denotar que a subsunção ao processo de trabalho, a preparação para a dinâmica laboral do dia, já começa a se estabelecer no bojo do transporte fornecido pelo empregador. É, pois, esse interstício tempo de trabalho.

 

Alguns outros debates mais tacanhas, formais e exegéticos, podem também aqui nos dar guarda para subverter o trato da contrarreforma no particular:

 

a) Há uma alteração na redação do parágrafo, aparentemente de menor magnitude, mas que traz impactos de interesse à nossa posição de classe. A redação original do parágrafo limitava as horas in itinere ao “tempo despendido pelo empregado até o local de trabalho e para seu retorno”, sem dizer o ponto de referência de saída e retorno. Agora, fixa-se, por incúria do legislador-empresarial, que as horas in itinere “abolidas” seriam aquelas que partiriam do local de residência da obreira e do obreiro. Aqui chegamos a  uma aporia legislativa, que abre margens à sustentação das horas in itinere nos termos da ainda resistente S. 90, do TST: mostra a prática que em  uma miríade de situações o trabalhador tem o transporte conferido pelo empregador a partir de “pontos de encontro” e locais que não sejam propriamente o de sua residência. Em raríssimos casos práticos trabalhadoras e trabalhadores são apanhados em casa para serem encaminhados ao trabalho. Sendo assim, a atual regra do art. 58, § 2o, da CLT, caso constitucional e harmônica com o restante da CLT fosse, não se aplicaria a quem trabalha e tem transporte conferido pelo empregador a partir de localidade que não seja exatamente a de sua residência.

 

b) Em esforço de blindagem interpretativa, afronta a nova redação uma tendência que se colocava historicamente no seio da jurisprudência brasileira de considerar o dispêndio de tempo até o efetivo posto de trabalho como sendo contabilizado enquanto horas in itinere – a exemplo da OJ Transitória n. 36, da SBDI-1 do TST. Trata-se da alteração da abordagem outrora objetivada no trajeto ao “local de trabalho”, passando agora “efetiva ocupação do posto de trabalho”. A alteração, que pode ser vista como coisa menor, por certo assume perigosa dimensão quando notamos que trabalhadoras e trabalhadores terceirizados por vezes se encontram no seu “local de trabalho” sem não estar no seu “posto de trabalho”, e o trajeto de um local para outro não venha a ser computado como tempo de labor, elastecendo sobremaneira sua jornada, sobretudo diante das novas tipologias contratuais advindas da contrarreforma. O mesmo vale para o trabalhador que ingressa no local de trabalho de dimensões colossais – uma refinaria, uma usina, uma fazenda, uma mina etc – e que leva minutos, horas, para chegar até seu efetivo posto de trabalho. A medida é de todo ilegal, porém, haja vista que a previsão Consolidada já invocada do art. 6o, caminhar no sentido de que “não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância”, ou seja, o trabalho, indiferentemente onde ele ocorra, está inserto na lógica empregatícia de idêntico modo. Estando no local de trabalho, estará à disposição do empregador, pelo que a exigência do início do tempo de trabalho ser o assumir do “posto” medida que merece maior repulsa.

 

c) Ainda que inconstitucional e ilegal, por certo o afobado legislador-empresarial abre nova senda para a ampliação protetiva de trabalhadoras e trabalhadores: ao tratar em conjunto, e de forma equiparada, o dispêndio de tempo “caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive fornecido pelo empregador”, para ida e retorno ao trabalho, possibilita a tomada em exercício dialético negativo destes veículos como sendo de horas in itinere. Se o setor patronal os generaliza para tentar abolir o instituto, fazendo tábula rasa das distinções historicamente consagradas, que sirva essa generalização ao interesse de quem vende sua força de trabalho! As juízas e juízes arrojados por certo poderão, se não a “qualquer meio de transporte” levar em conta como sendo de tempo à disposição do empregador – o que nos parece a medida mais acertada, inclusive nos empenhos que já sinalizamos alhures de integração do Direito do Trabalho com as pautas da cidade –, ao menos considerar o tempo de deslocamento usando das próprias energias vitais do trabalhador (seja a pé, ou por veículo de tração, como bicicletas e outros) como de hora in itinere.

 

De outra banda, por supostamente ocioso ante a alteração do § 2o do art. 58, Consolidado, o patronal e açodado movimento legislativo revogou o    § 3o do mesmo artigo. Quanto a tal ponto, a resposta obreira parece simples: considerando que o advento do § 3o em menção fora um retrocesso frente a compreensão consagrada das horas in itinere  – haja vista prever limitação potencial ao cômputo das horas de transporte à jornada normal de trabalho, possibilitando a pré-contratação coletiva destas em patamar inferior à realidade e de forma desassalariada por micro e pequeno empresários – sua revogação deve ser tida como benéfica à classe. Poderá, pois, ser um motivador à desconsideração de pactos coletivos pretéritos que caminhem nesse sentido, impondo o reconhecimento do sobrelabor e correspondente remuneração com amparo no efetivo tempo despendido no transporte conferido pela patronal ou realizado.

 

Assim, uma adequada saída, no bojo da crítica interna ao direito, seria a incorporação destas e outras ferramentas formais de resistência à atual redação da S. 90, do TST, que subsiste como bastião ainda não flexionado no trato da matéria. Por certo a medida é tímida, sendo que só se sustentarão tais pedras de salvação com a única e realmente efetiva forma de peleja: o enfrentamento direto de classes, tomando o Direito do Trabalho como arma tática.

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Novembro/2017