A FLAGRANTE INCONSTITUCIONALIDADE DA NOVA REDAÇÃO DO ART. 457 DA CLT

 

 

 

JÚLIA SCHILLING MAGALHÃES

Advogada Trabalhista.

ADROALDO MESQUITA DA COSTA NETO

Advogado Trabalhista.

 

 

 

A Constituição Federal, ao estabelecer proteções jurídicas, muitas vezes lança mão de conceitos e categorias jurídicas já consolidadas historicamente na doutrina, na jurisprudência e na legislação infraconstitucional.

 

São inúmeros os exemplos. Tome-se um deles, o direito adquirido, que está expressamente protegido pelo art. 5º da Constituição Federal (inciso XXXVI). Trata-se de conceito que advém de toda uma construção jurídica anterior, culminando na definição clássica do artigo 6º, § 2º, da antiga Lei de Introdução ao Código Civil, Decreto-Lei nº 4.657/1942 (hoje denominada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro): “Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”.

 

Essa definição sem dúvida foi incorporada ao texto constitucional. Quando o constituinte originário consagrou imunidade ao direito adquirido, inclusive e principalmente contra alterações legislativas, protegeu exatamente aquilo que era então consagrado como tal, já que entender o contrário implicaria em permitir ao legislador ordinário alterar a regra constitucional mediante a simples manipulação do conceito. Bastaria modificar a definição de direito adquirido, impondo-lhe restrições, e assim, por via transversa, eliminar a garantia constitucional.

 

Imaginemos, por exemplo, que a lei ordinária passasse a definir o direito adquirido como exclusivamente aquele garantido por decisão judicial transitada em julgado, numa clara restrição quanto ao conceito que já estava consagrado quando da edição do texto constitucional. Ora, a reação do meio jurídico seria imediata no sentido da sua inconstitucionalidade, e isso pela simples modificação do conceito até então consagrado e devidamente protegido pela Constituição Federal. Com efeito, os direitos protegidos pelo artigo 5º, XXXVI, são aqueles “que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem”, não se podendo alterar tal conceito sem modificar a própria Constituição.

 

Ou se proclama a flagrante inconstitucionalidade de tal absurdo, ou se entrega a Constituição às mãos do legislador ordinário, para que dela faça o que quiser.

 

E são muitos os exemplos semelhantes. No mesmo art. 5º temos o direito de propriedade (inciso XXII) e o direito de herança (inciso XXX). Bastaria ao legislador ordinário restringir os conceitos de propriedade e de herança, e assim fraudar a garantia a esses dois institutos.

 

Pois bem, em que pese possa parecer um exemplo absurdo, ocorreu, de fato, situação semelhante a essa acima imaginada, a partir da edição da Lei nº 13.467/2017, que pretendeu alterar o conceito de salário, que igualmente foi incorporado pela Constituição Federal, ao garantir a sua irredutibilidade (art. 7º, inciso VI).

 

Com efeito, assim como o conceito de direito adquirido é algo consolidado, como acima referido, o conceito de salário também é senso comum no meio jurídico, sendo entendido genericamente como qualquer contraprestação paga pelo empregador ao empregado pelo trabalho prestado. Em termos específicos, a legislação ordinária, notadamente o art. 457 da CLT, delimitava a sua amplitude quanto à contraprestação em espécie[1], nos seguintes termos:

 

Art. 457 - Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber.

§ 1º - Integram o salário não só a importância fixa estipulada, como também as comissões, percentagens, gratificações ajustadas, diárias para viagens e abonos pagos pelo empregador.

§ 2º - Não se incluem nos salários as ajudas de custo, assim como as diárias para viagem que não excedam de 50% (cinquenta por cento) do salário percebido pelo empregado.        

 

E a Constituição Federal, no seu artigo art. 7º, inciso VI, incorporou exatamente esse conceito de salário ao instituir o princípio da sua irredutibilidade, assim como incorporou o conceito de direito adquirido, de direito de propriedade, de direito de herança, etc. Trata-se de mandamento que se dirige não tanto ao empregador, que já estava impossibilitado de reduzir salários por força do art. 468 da CLT, mas principalmente ao legislador infraconstitucional, que não poderá agir de forma a permitir a redução daquilo que a Constituição estabeleceu como irredutível.

 

Mas eis que é editada alteração do art. 457, caput e parágrafos primeiro e segundo, da CLT, com a reforma implementada pela Lei nº 13.467/2017:

 

Art. 457.  Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber.                   

§ 1o Integram o salário a importância fixa estipulada, as gratificações legais e as comissões pagas pelo empregador.

§ 2o As importâncias, ainda que habituais, pagas a título de ajuda de custo, auxílio-alimentação, vedado seu pagamento em dinheiro, diárias para viagem, prêmios e abonos não integram a remuneração do empregado, não se incorporam ao contrato de trabalho e não constituem base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário.

 

Com efeito, a Lei nº 13.467/2017 reduziu drasticamente o conceito de salário constante no artigo 457 da CLT, alterando, assim, toda a construção histórica que se tinha nesse sentido, tanto pela doutrina, como pela jurisprudência. A principal mudança com relação ao texto antes consolidado refere-se à exclusão expressa dos valores percebidos pelo empregado a título de auxílio-alimentação (vedado seu pagamento em dinheiro), diárias para viagem, inclusive as que excedam 50% do salário base e abonos. As gratificações ajustadas e as percentagens, em que pese não tenham sido expressamente excluídas pelo novo texto do artigo, não mais constam como integrantes do conceito de salário, como eram anteriormente. Assim, o salário, de acordo com a pretendida alteração legislativa, passaria a corresponder apenas à importância fixa estipulada, às gratificações legais e às comissões.

 

Tome-se, então, o exemplo das gratificações ajustadas, expressamente abrangidas no conceito consagrado de salário, e, portanto, imunizadas contra a sua redução ou supressão. Qualquer disposição legal que pretenda retirar tal imunidade será flagrantemente inconstitucional,   pois lei alguma poderá permitir que se faça aquilo que a Constituição veda. Assim, a redução ou supressão de uma gratificação ajustada, integrante do conceito de salário, e que, portanto, recebeu a proteção constitucional, somente prevalecerá se alterada a própria Constituição.  E qualquer artifício legislativo que pretenda fraudar tal garantia estará inapelavelmente condenado à inconstitucionalidade.

 

Resta claro, assim, que o poder constituinte, ao tratar de salário, utilizou conceito já consagrado, e aquilo que se tem como tal passou a ter assento constitucional.

 

Nesse contexto, destinando-se o respeito à irredutibilidade salarial precipuamente ao próprio legislador, é certo que este está impedido de reduzir o conceito de salário vigente à época da elaboração do texto constitucional de modo a autorizar algo que ele proibiu expressamente, sob pena de estar permitindo a modificação da Constituição pela via ordinária, sendo flagrante a inconstitucionalidade da nova redação do art. 457 da CLT, introduzida pela Lei nº 13.467/2017.

 

Além disso, é possível, também, demonstrar a inaplicabilidade desse novo dispositivo à cada um dos direitos protegidos pelo constituinte e que dependem do próprio conceito de salário ou de remuneração.

 

Todas as garantias previstas pelo constituinte que tiveram como premissa justamente proteger o que sempre se teve como salário ou remuneração não poderão ser restringidas pelo legislador infraconstitucional, de modo que o conceito que se pretende instituir pela Lei nº 13.467/2017 não se aplicará também no que toca a esses direitos constitucionais.

 

Com efeito, tendo a Constituição previsto que é direito do trabalhador rural e urbano a remuneração do trabalho noturno superior à do diurno (inciso IX do art. 7º), bem como a remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal (inciso XVI do art. 7º), é certo que o trabalho noturno e o extraordinário deverão ser calculados com base no que se considerava salário no momento de elaboração da Constituição.

 

A proteção ao salário, constante no inciso X do art. 7º da Constituição Federal, também deverá ser aplicada para todos os valores já consagrados como integrantes do conceito de salário, de modo que constituí crime a retenção dolosa de qualquer deles.

 

Igualmente ocorre no que toca ao direito ao gozo de férias anuais (inciso XVII do art. 7º da Constituição Federal), as quais o constituinte previu que seriam remuneradas, pelo menos, com mais um terço que o salário normal, bem como com relação ao décimo terceiro salário (inciso VIII do artigo 7º da Constituição Federal), o qual corresponde à remuneração integral.

 

Também em relação à licença gestante (inciso XVIII do art. 7º da Constituição Federal), que o constituinte previu que deveria ser concedida sem prejuízo do emprego e do salário. Por fim, a proibição de diferença de salários por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (inciso XXX) e a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário do trabalhador portador de deficiência (inciso XXXI) também deverão levar em conta o que o constituinte entendia como salário na época em que elaborado o texto e não o conceito de salário mitigado pela reforma trabalhista de 2017.

 

Vê-se, portanto, que, ainda que o texto constitucional não faça referência expressa ao que entende como sendo o conceito de determinados termos jurídicos, é preciso levar em conta que o poder constituinte foi influenciado pelos próprios conceitos que já eram consagrados à época, tanto na doutrina e na jurisprudência, como na legislação. Desse modo, uma vez havendo conceitos definidos e consolidados de institutos ou direitos que foram protegidos pela Constituição Federal, por certo que não se pode pretender modificar tais conceitos posteriormente, a partir da edição de mera lei ordinária, sob pena de subverter a hierarquia das normas, como já referido.

 

Conclui-se, assim, que a alteração implementada pela Lei nº 13.467/2017, que restringe o conceito de salário, é flagrantemente inconstitucional, eis que o legislador pretendeu modificar a própria garantia de irredutibilidade salarial do art. 7º da Constituição Federal, a qual tem como pressuposto um conceito de salário mais amplo e que era consagrado à época.

 

Além disso, é certo que os direitos à irredutibilidade salarial, à remuneração diferenciada do trabalho noturno e do extraordinário, à proteção ao salário (constituindo crime a sua retenção dolosa), às férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal, ao décimo terceiro salário, à licença gestante sem prejuízo do salário, e à isonomia devem ser garantidos à luz daquilo que era inequivocamente definido como salário em 1988, quando editada a Constituição Federal.

 


[1] A contraprestação in natura, tratada no art. 458 da CLT, não é objeto do presente artigo.

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Novembro/2017