FIM DOS LIMITES À DURAÇÃO DO TRABALHO: RETORNO À LÓGICA DO SÉCULO XVIII

 

 

 

VALDETE SOUTO SEVERO

Mestre em Direitos Fundamentais, pela Pontifícia Universidade Católica - PUC do RS. Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (USP) e RENAPEDTS - Rede Nacional de Pesquisa e Estudos em Direito do Trabalho e Previdência Social. Professora, Coordenadora e Diretora da FEMARGS - Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS. Juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.

 

 

 

Quando o assunto é jornada, o potencial lesivo da Lei 13.467 é ainda maior. A medida do tempo que o trabalhador “vende" para o tomador do seu trabalho é a medida da troca, daí a importância das regras de limitação da jornada. A Constituição, como bem sabemos, fixa jornada máxima de 8h e carga semanal de 44h. O art. 611A, introduzido na CLT pela Lei 13.467/17 refere textualmente que a "convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: I - pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais”. Pois bem, os limites constitucionais são claros. Não há como, desde a lógica de proteção instituída em 1988, admitir trabalho por mais de 8h por dia e 44h por semana. Sabemos que a retórica do desmanche tenta fazer desse inciso I letra morta, ao dispor, na sequência imediata, a possibilidade de pactuação acerca de banco de horas anual ou redução do intervalo para repouso e alimentação.

 

A linguagem do Direito do Trabalho está contaminada por sua razão histórica de existência. Aliás, é mesmo no estudo da história das relações de trabalho, no Brasil como no resto dos países ocidentais, que descobrimos com facilidade a importância que a limitação da jornada sempre teve nas lutas organizadas pela classe trabalhadora, como forma de tensionamento do capital. É que as questões afetas à jornada de trabalho denunciam o que há de insuperável na relação social de trabalho assalariado e, portanto, no próprio sistema.

 

Como resume Marx, jornada é “o tempo durante o qual o capitalista consome a força de trabalho que comprou do trabalhador”. Por isso mesmo, se o trabalhador consome seu tempo disponível para si mesmo, “ele furta o capitalista” [1]. Ocorre que tempo de trabalho é tempo de vida, é “tempo para formação humana, para o desenvolvimento”, para as relações sociais, “para o livre jogo das forças vitais físicas e intelectuais”. É tempo de consumo “de ar puro e luz solar”, de crescimento, de desenvolvimento saudável[2]. Por isso mesmo a limitação do tempo de trabalho sempre constituiu a mais árdua e insistente luta entre capital e trabalho.

 

A tensão entre a necessidade de comprar cada vez mais tempo e de vender o menor período possível de tempo de trabalho é coletiva. Mesmo quando um trabalhador reclama suas horas extras não pagas ou o desrespeito à limitação do seu tempo de trabalho, ele está denunciando um comportamento que atinge a coletividade dos trabalhadores. Essa é uma das razões pelas quais o discurso dos defensores da “reforma”, quando exaltavam a possibilidade de o trabalhador negociar diretamente redução do intervalo para ir mais cedo para casa, revela-se completamente mentirosa. Não há como negociar tempo de trabalho individualmente, quando a lógica da organização empresarial é necessariamente coletiva. O empregador não dirige a atividade humana porque a lei assim o define, mas porque a realidade concreta do uso da força de trabalho como mercadoria, dentro do contexto capitalista de produção, é coletiva. A empresa se organiza e atua coletivamente, seja ela indústria, loja, mina de carvão ou transportadora.

 

Nesse aspecto, toda a fragilização que a Lei 13.467/17 tenta impor quanto à proteção ao tempo de trabalho precisa ser examinada sob a perspectiva do que está envolvido nessa troca e dos parâmetros jurídicos já fixados para determinar a medida da exploração possível. A intensa mobilização dos trabalhadores para alcançar na Inglaterra de 1847[3], a aprovação de uma lei fixando jornada de 12 horas para todos os trabalhadores e a limitação do trabalho em 10 horas para mulheres e crianças é um interessante exemplo desse embate. Essa urgência histórica foi em certa medida encampada até mesmo pela Igreja Católica, que na Rerum Novarum de 1891, já mencionava que as horas de trabalho num dia não deveriam exceder as forças do trabalhador[4]. Portanto, os limites com os quais o capital convive hoje lhe foram impostos pelas lutas dos trabalhadores e se consolidaram como o mínimo a ser respeitado, no que concerne à limitação do tempo de trabalho.

 

A primeira Convenção da OIT, criada em 1919, ao fim da Primeira Guerra Mundial, estabelecia a jornada máxima de oito horas. Também no Brasil, praticamente todas as greves registradas no início do Século XX tiveram como reivindicação a redução das jornadas, que variavam entre 10h e 12h[5]. As primeiras normas trabalhistas que limitavam o tempo de trabalho no Brasil, como o Projeto nº 265 de 1923[6], a edição de algumas leis esparsas[7] e a aprovação de um decreto de Getúlio Vargas regulamentando a jornada de oito horas para todos os trabalhadores urbanos, excluindo os trabalhadores rurais[8] já reconheciam esse parâmetro internacional das 8h de trabalho como o máximo da exploração diária. O avanço introduzido pela Constituição de 1988, mantendo a jornada máxima de 8h, reconhecendo-a como direito fundamental, e estabelecendo carga semanal máxima de 44 horas, é exatamente o que a Lei 13.467/17 (e na linha desse desmanche a PEC 300) pretende destruir.

 

É bom que se registre que o que efetivamente discutia-se em 1988, como avanço necessário no caminho da proteção ao tempo de trabalho, era   a conquista da carga semanal máxima de 40 horas, proposta que acabou sendo rejeitada. A majoração do acréscimo do adicional de horas extras previsto na CLT, de 20% para 50%, na Constituição de 1988, também revelou-se tímida, pois havia, inclusive, proposta no sentido da proibição da realização de horas extraordinárias de trabalho.

 

O reconhecimento da força integrativa da história das relações de trabalho e de sua regulação, aliado à razão de existência de normas trabalhistas (a proteção a quem trabalha) e da manutenção de um texto constitucional que impõe limites à ânsia destruidora do capital, determinam um olhar contaminado, para as regras inseridas na CLT, pela Lei 13.467/17.

 

Por fim, é preciso atentar para o fato de que todas as alterações das regras sobre a jornada de trabalho, que, certamente, buscam permitir uma maior exploração do trabalho pelo capital, tentando afastar os limites constitucionais, para além de evidentemente contrariarem a norma do art. 7º da Constituição, encontram restrição no texto da própria reforma. Basta que se confira efetividade concreta à promessa contida no art. 611-A, quando diz que as cláusulas de negociação em relação à jornada devem respeitar os limites constitucionais (inciso I) ou o art. 611-B, que textualmente determina a observância das normas de saúde, higiene e segurança do trabalho (inciso XVII). Assim, mesmo com outra norma da própria Lei nº 13.467/17 dizendo o contrário, não haverá como, por aplicação da ordem jurídica vigente, legitimar jornada que ultrapasse oito horas por dia, que permita horas extraordinárias habituais ou que eliminem períodos de descanso.

 

O art. 4° da CLT mantém sua redação atual, O § 2º criado pela Lei 13.467/17 precisa harmonizar-se com a regra geral de que tempo à disposição não se confunde com tempo trabalhado. E, como afirma o art. 4°, considera-se como de serviço efetivo. Incumbirá ao juízo, diante do caso concreto, evidenciar se o trabalhador, por exemplo, estava no ambiente de trabalho "por escolha própria”. Se lá chegou, antes do horário de início da jornada, porque o transporte coletivo assim o impôs, porque dependeu de transporte fornecido pelo empregador; porque a combinação era de que estivesse pronto no exato minuto em que iniciava sua jornada, ou por qualquer outro fator alheio a sua vontade, é certo que o tempo despendido em qualquer das atividades elencadas nesse dispositivo será tempo à disposição e, portanto, deverá integrar a jornada.             

 

O caput do art. 58 da CLT também manteve-se inalterado. O “outro limite” nele referido, dentro da lógica expressa do caput do art. 7° da Constituição, deve necessariamente implicar a “melhoria das condições sociais” do trabalhador, pois do contrário estaria negando eficácia a própria norma.

 

O § 2º do art. 58, portanto, deverá sofrer interpretação que respeite a história, a coerência e o princípio instituidor do Direito do Trabalho. A troca da locução “local de trabalho” por “posto de trabalho”, em clara tentativa de legitimar inclusive o não pagamento do tempo gasto dentro do ambiente de trabalho, até a chegada ao efetivo posto, ou desde a sede da empresa até aquela da tomadora dos serviços não resiste à regra (hígida mesmo após a “reforma”) deve ser compreendida à luz do caput do art. 4º. O período em que o trabalhador se desloca até seu posto de trabalho é tempo à disposição e, como tal, deve ser remunerado. Admitir o contrário, implicaria aceitar a lógica do trabalho não remunerado e, por consequência, em situação análoga a de escravo. Além disso, a regra desse parágrafo segundo não mais se refere a situações excepcionais, como aquela em que não há transporte público regular até o local de trabalho ou a empresa está localizada em local de difícil acesso. Como regra geral, efetivamente o tempo que o empregado despende entre a casa e o trabalho não é remunerado. A remuneração é reconhecida apenas para situações excepcionais, em que, na linha da redação do § 2º do art. 4º, o empregado não tem escolha própria. Ao contrário, precisa se sujeitar ao tempo imposto pelo empregador, para esse deslocamento.

 

A jornada a tempo parcial constitui uma alteração promovida no texto da CLT que nunca “colou”. Dificilmente será diferente agora. Ainda que a “reforma" tenha fragilizado ainda mais a proteção ao trabalhador assim contratado, permitindo, no art. 58-A, uma contratação em regime de tempo parcial para trabalho por 30h semanais, segue impedindo, nesses casos, a realização de horas extras. Aqui, a compatibilização com a ordem jurídica de proteção vigente determina que ao empregado assim contratado seja garantida remuneração equivalente ao salário mínimo nacional. Isso porque o art. 7º da Constituição o garante a todos os trabalhadores brasileiros, sem qualquer exceção.

 

Quanto à possibilidade de contratação para trabalhar no máximo 26h semanais, com possibilidade “de acréscimo de até seis horas suplementares semanais" (e a consequente revogação do § 4° do art. 58A, que vedava realização de horas extras em contrato a tempo parcial), é de se observar a mesma lógica de proteção à remuneração, que impede contratação, no Brasil, por valor inferior ao mínimo. Nesses casos, a própria Lei 13.467 limita a possibilidade de compensação por folgas à "semana imediatamente posterior à da sua execução, devendo ser feita a sua quitação na folha de pagamento do mês subsequente, caso não sejam compensadas” (§ 5º do art. 58A).

 

Quanto à tentativa de supressão de parte do direito às férias, comprometendo a integralidade do descanso, que se evidencia na redação do § 6º do art. 58A, a má técnica de redação que identifica a “reforma" facilita o afastamento da regra. É que o artigo 143 da CLT não foi alterado e prevê expressamente que a conversão das férias em abono pecuniário "não se aplica aos empregados sob o regime de tempo parcial”(§ 3°). Por fim, o § 7º do art. 58A dispõe que "as férias do regime de tempo parcial são regidas pelo disposto no art. 130 desta Consolidação". Esse artigo, não alterado, garante o direito a 30 dias de férias por ano, na linha da proteção estabelecida em âmbito constitucional. Todos eles, portanto, tem direito a férias de pelo menos 30 dias por ano de trabalho.

 

A nova redação dada ao caput do art. 59 da CLT estabelece que "a duração diária do trabalho poderá ser acrescida de horas extras, em número não excedente de duas, por acordo individual, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho”. Entretanto, o artigo 7º da Constituição fixa como direitos fundamentais: XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho. Por sua vez, o art. 611A, introduzido pela “reforma”, estabelece que a "convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: I – pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais”. 

 

Diante dessa ordem jurídica, a compensação só pode ter o condão de reduzir o máximo previsto no texto constitucional. Além disso, não há como aceitar a realização de acordo individual, ainda mais tácito, para a realização de horas extraordinárias. Então, a regra introduzida no § 6º do art. 59 viola diretamente não apenas a Constituição, mas também a literalidade do art. 611A introduzido na CLT. A disposição do § 1º do art. 61, alterado para admitir excesso de trabalho mesmo sem previsão em acordo ou convenção coletiva de trabalho vai na mesma linha. O mesmo ocorre com a nova redação do § 5º do art. 59, quando estabelece que o "banco de horas de que trata o § 2º deste artigo poderá ser pactuado por acordo individual escrito, desde que a compensação ocorra no período máximo de seis meses”.

 

Aliás, é de se observar que o § 2º aqui referido não foi alterado pela Lei 13.467/17 e não faz referência alguma a "banco de horas”. Esse é o apelido dado ao regime de compensação introduzido na legislação trabalhista na década de 1990, pela Lei 9.601, pelo qual o trabalho extraordinário, como regra, deixa de ser pago com adicional e ainda possui um prazo maior que o próprio pagamento do salário para seu acerto, o que o torna incompatível com a ordem constitucional. O art. 59-B introduzido pela Lei 13.467/17 também não resiste ao exame de compatibilidade com o ordenamento jurídico vigente. Pela redação dada a esse dispositivo, "o não atendimento das exigências legais para compensação de jornada, inclusive quando estabelecida mediante acordo tácito, não implica a repetição do pagamento das horas excedentes à jornada normal diária se não ultrapassada a duração máxima semanal, sendo devido apenas o respectivo adicional”. Arrematando, no parágrafo único, que "a prestação de horas extras habituais não descaracteriza o acordo de compensação de jornada e o banco de horas". Trata-se da introdução, no texto da CLT, de jurisprudência do TST, que sem dúvida afronta o direito constitucional ao pagamento das horas extras. O não atendimento das exigências para a compensação equivale à inexistência de compensação. Logo, retorna-se à regra geral, que garante o pagamento, como extras, das horas que extrapolam a jornada máxima de 8h. O art. 9º da CLT, somado ao art. 166, VI, do Código Civil ("é nulo o negócio jurídico quando "tiver por objetivo fraudar lei imperativa”), não apenas autorizam, como impõem ao intérprete aplicador o afastamento de qualquer regra que, negando a proteção que inspira e justifica o Direito do Trabalho, promova essa fraude, como é o caso do referido art. 59B.

 

O § 4º do art. 71 foi alterado, para dispor que "a não concessão ou a concessão parcial do intervalo intrajornada mínimo, para repouso e alimentação, a empregados urbanos e rurais, implica o pagamento, de natureza indenizatória, apenas do período suprimido, com acréscimo de 50% (cinquenta por cento) sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho”.

 

Essa norma precisa ser examinada juntamente com aquela do inciso III, do art. 611, da CLT, segundo o qual a “convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: (...) III – intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas”. A autorização para concessão de intervalo de, no mínimo, 30 (trinta) minutos, não altera a regra geral do caput do art. 71, que se mantém hígida, e que fixa o mínimo de 1h de intervalo para quem preste serviços por mais de seis horas consecutivas. O fundamento apresentado para a aprovação da lei foi o de que essa redução seria para beneficiar o empregado. Por consequência, para que uma tal negociação seja válida, é necessário que haja uma demonstração científica de que tal redução não acarreta riscos à saúde, como determina o art. 7º da Constituição e o próprio art. 611B da “reforma”.

 

Deve, ainda, haver prova de que existem condições efetivas para que o intervalo seja cumprido e se destine, integralmente, a beneficiar concretamente o trabalhador. Tal intervalo tem dupla finalidade: permitir a desconexão e a alimentação do trabalhador. Então, se ambas não forem atingidas, não há como reconhecer benefício na negociação que o reduz. Ainda, deve haver comprovação de que haja redução do tempo total de permanência do empregado no ambiente de trabalho. É incompatível com o objetivo da norma o ato de submeter o trabalhador, com intervalo reduzido para 30 minutos, à execução de tarefas em sobrejornada, por exemplo. Por fim, a supressão do intervalo reduzido equivale à invalidação do acordo de redução, vez que desatende à finalidade do ajuste. Assim, diante da invalidação, prevalece a regra geral do intervalo de uma hora e a necessidade de indenização pela sua supressão. Tal circunstância determina, ainda, a possibilidade de indenização por dano moral, em razão do sofrimento imposto a quem se submete a tais condições de trabalho, sem dúvida nocivas à higidez física e psíquica do ser humano.

 

A alteração do art. 134 é para permitir o fracionamento do repouso anual "em até três períodos" (§ 1º), "desde que haja concordância do empregado, sendo que um deles não poderá ser inferior a quatorze dias corridos e  os demais não poderão ser inferiores a cinco dias corridos, cada um”.  É revogado o § 2°, que impedia o fracionamento para menores de 18 e maiores de 50. Por fim, o § 3º estabelece que é "vedado o início das férias no período de dois dias que antecede feriado ou dia de repouso semanal remunerado”. A fruição de 30 dias de férias é medida de prevenção de acidentes, doenças, envelhecimento precoce, estafa física e mental. Permite a desconexão, o convívio familiar, o turismo, a leitura e a realização de outras atividades que certamente contribuem para tornar melhor o convívio em sociedade. Por isso, a não-fruição ou o parcelamento implica a total supressão desse direito ao ócio, ao lazer, à desconexão. Se o direito mínimo previsto na Constituição com o título de férias (art. 7º, XVII - gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal) é 30 dias por ano (conteúdo vigente à época da edição da norma constitucional - Art. 130, I, da CLT) de descanso com a percepção de salário acrescido de adicional de 1/3, a fruição de 15, 20 ou 25 dias de férias por ano, ou o fracionamento dos períodos de descanso, implica o desrespeito absoluto a esse descanso mínimo assegurado como direito fundamental.

 

De qualquer modo, de acordo com a literalidade do art. 134, esse fracionamento dependerá sempre de que haja expressa concordância do empregado. Essa concordância, em uma realidade em que há subordinação, está sempre sujeita ao crivo jurisdicional, pois evidenciado vício de consentimento, pela necessidade de manter o vínculo, por exemplo, há de ser considerada nula, na forma do art. 9º da CLT e do art. 166, VI, do Código Civil. Aliás, a noção de irrenunciabilidade, que decorre diretamente da proteção, autoriza inclusive presunção nesse sentido.

 

A perversidade da permissão para a exploração do trabalho humano por 12h consecutivas, quando a ordem internacional e constitucional vigente claramente fixa, já há mais de século, o limite máximo de 8 horas diárias, é fruto de desconstrução gestada dentro da Justiça do Trabalho. Há, inclusive, súmula autorizando essa prática, cuja observância deverá ser rechaçada, em razão da redação dada ao art. 8º da CLT. Isso, porém, não elimina nem diminui o caráter igualmente perverso da “reforma”, que traz para o texto da CLT essa aberração, no art. 59-A.

 

A primeira observação a ser feita é que o § 2º do art. 59 da CLT segue com igual redação, fixando como máximo de extensão extraordinária da jornada, o limite de 2h por dia. Mesmo essa extensão, para que seja legalmente válida, deve ser extraordinária, sob pena de não estarmos mais tratando de horas extras, mas sim de jornada regular, em contraposição à literalidade do texto constitucional. Ainda que estivéssemos diante de um contrato de natureza comum e aplicássemos as regras do direito comum, como o art. 8º estimula, em sua nova redação, não teríamos como sustentar a possibilidade de uma convenção entre as partes derrogar, ignorar, contrariar, dispositivo constitucional, norma convencional e dispositivo de lei, para o efeito de suprimir direito fundamental. Bastaria invocar o já mencionado art. 166 ou mesmo o art. 1.707, ambos do Código Civil. Isso porque a assimilação de uma jornada ordinária de 12h implica renúncia ao pagamento de pelo menos 4h de trabalho por dia, impondo ao trabalhador a prestação de serviço sem contrapartida remuneratória, como condição para o acesso ao emprego.  Para que essa consequência ilegal não se verificasse, seria preciso que o empregador demonstrasse, no caso concreto, que a jornada de 12h implicará remuneração proporcionalmente maior (pelo menos 1/3 a mais)  do que aquela praticada para os trabalhadores contratados por 8h.

 

Além disso, a regra do art. 611A, quando estabelece textualmente que a "convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre: I – pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais” deverá constituir baliza de contenção e afastamento das regras inseridas na CLT, cujo objetivo é o de claramente afrontar a ordem jurídica de proteção a quem trabalha. O parágrafo único do art. 59A também está completamente dissociado do princípio da proteção, pois visa suprimir direito constitucional contido no inciso XV do art. 7º, da Constituição, que sequer contempla exceções. Como tal, é nulo, porque suprime direito, desafiando a norma do art. 9º da CLT e do art. 1.707 do Código Civil.

 

O art. 59A ainda refere devam ser “observados ou indenizados os intervalos”. E o parágrafo único do art. 60 excetua "da exigência de licença prévia” justamente a mais extenuante e nociva de todas: a ilegal jornada de doze horas. O pagamento do intervalo evidentemente não compensa o desgaste físico e mental suportado ao trabalhador. Aliás, sequer é lícito o pagamento antecipado de descumprimento de Direito, ainda mais de direito alimentar de caráter fundamental. Seria como admitir que alguém pagasse uma multa de trânsito, por exemplo, e com isso se sentisse a vontade para dirigir em alta velocidade, sem qualquer responsabilidade jurídica.

 

E a determinação do pagamento do intervalo suprimido não é suficiente para ressarcir o prejuízo causado ao trabalhador do que se exigir 12h consecutivas de trabalho sem intervalo para descanso e alimentação, pois também isso equivaleria a compreender que um furto estaria resolvido pela mera devolução da mercadoria subtraída. No caso das relações de trabalho, em que o dano é pessoal e irreparável, sequer seria possível cogitar a mesma forma de punição/ressarcimento prevista no Direito civil ou no âmbito penal, no que tange aos crimes contra o patrimônio. O que se verifica, e que a “reforma" busca inutilmente legitimar, é pior do que isso: é o reconhecimento da possibilidade de prática contumaz de atos ilícitos mediante prévio pagamento ao trabalhador.

 

Ricardo Ferraço chega a mencionar, em seu relatório, a necessidade de veto a esse dispositivo, por entender que "da forma como consta no projeto, a previsão não protege suficientemente o trabalhador, que pode ser compelido a executar jornadas extenuantes que comprometem a sua saúde e até a sua segurança”. Permanecer 12h ou mais no ambiente de trabalho, sem qualquer intervalo, em atividades que no mais das vezes se realizam sob intempérie (vigilantes e vigias) ou dentro de ambientes hospitalares, sem dúvida torna o trabalho penoso, angustiante e adoecedor. Atrai, portanto, inclusive a regra do art. 611B, quando diz constituir objeto ilícito qualquer pactuação que atinja "normas de saúde, higiene e segurança do trabalho previstas em lei ou em normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho” (XVII).

 

Por fim, o regime de teletrabalho é disciplinado nos artigos 75-A e seguintes, definido como a prestação de serviços "preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não se constituam como trabalho externo" (art. 75-B) e prevendo inclusive o comparecimento às dependências do empregador "para a realização de atividades específicas que exijam a presença do empregado no estabelecimento” (parágrafo único desse mesmo dispositivo), trata de uma realidade que já existe e que, justamente em face da tecnologia desenvolvida, em nada impede a fixação    e o controle da jornada.

 

Nesse sentido, o artigo 6º da CLT, cuja redação foi alterada em 2011, estabelece que "não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos  da relação de emprego". E ainda acrescenta, em seu parágrafo único, que os "meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio". 

 

A regra ora prevista no art. 62, III, da CLT não subsiste, portanto, no necessário confronto com a disposição do artigo sexto. Além de pretender fixar mais uma hipótese de trabalho sem controle e pagamento das horas extraordinárias, o que implica quebra completa da possibilidade de aferição de medida da troca na relação de emprego, a Lei 13.467/17 ainda dispõe que "disposições relativas à responsabilidade pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho remoto, bem como ao reembolso de despesas arcadas pelo empregado, serão previstas em contrato escrito” e "não integram a remuneração do empregado” (Art. 75-D). A pretensão é clara: transferir para o empregado os custos da produção. A aplicação desse dispositivo, de forma comprometida com o princípio da proteção, a fim de torná-lo norma jurídica trabalhista, e com atenção a todo o sistema jurídico, determina necessariamente que essa responsabilidade seja do empregador.

 

É o que se extrai dos termos do art. 2º da CLT, quando define empregador como sendo quem assume o risco do negócio. Essa responsabilidade também está presente no dever, previsto no art. 7º da Constituição e reproduzido em vários dispositivos da CLT, de que o empregador previna riscos à saúde do trabalhador, no ambiente de trabalho. Logo, a disposição    do art. 75-E, no sentido de que o "empregado deverá assinar termo de responsabilidade comprometendo-se a seguir as instruções fornecidas pelo empregador” não pode ser interpretada/aplicada de modo a transferir ao empregado dever que grava a figura de quem toma o trabalho, sob pena de subversão de toda a ordem jurídica. O dever do empregador, de instruir os empregados, de maneira expressa e ostensiva, quanto às precauções a tomar a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho, como refere o caput desse dispositivo, não afeta o dever de, igualmente, fiscalizar o ambiente, fornecer os elementos necessários a torná-lo saudável e, sobretudo, impedir o trabalho em sobrejornada, na forma determinada nos artigos que compõem o Capítulo V da CLT: Da Segurança e da medicina do trabalho.

 

É preciso atentar, ainda, para a regra do art. 611A, quando permite negociação coletiva acerca de plano de cargos e salários. Esse inciso tem, em realidade, como principal objetivo estabelecer a possibilidade de definir, por norma coletiva, quais são as funções de confiança. Aqui se verifica  a imperiosa necessidade de enfrentarmos a incompatibilidade do art. 62 da CLT com a ordem constitucional vigente. Pois é justamente para evitar o pagamento de horas extras, que se prevê a possibilidade de negociar quais seriam as funções de confiança. É evidente que a fidúcia especial que caracteriza confiança capaz de afastar, para o caso concreto, as normas de duração do trabalho, não depende de negociação ou previsão em instrumento de contrato, decorre da realidade da relação de trabalho. Nesse sentido, o princípio da proteção, especialmente quando estabelece a primazia da realidade, deverá ser o vetor para a aplicação ou o afastamento de regra autônoma que sobre isso se pronuncie.           

 

 


[1] Ele prossegue: “o capitalista se apoia, portanto, na lei da troca de mercadorias. Como qualquer outro comprador, ele buscar tirar o maior proveito possível do valor de uso de sua mercadoria”.  MARX, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 307-8.

 

[2] MARX, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 337.

 

[3] No primeiro período de desenvolvimento da indústria fabril, o excesso de força de trabalho disponível permitia a absorção e o consumo de um número significativo de trabalhadores, sem a preocupação com o tempo de duração dessa mercadoria. Em discurso proferido em abril de 1863 na Grã-Bretanha, o inventor da olaria moderna declarou sem qualquer constrangimento que “a indústria do algodão existe há 90 anos”, mas durante “três gerações da raça inglesa, ela devorou nove gerações de trabalhadores algodoeiros”. MARX, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 339.

 

[4] É preciso pontuar o momento histórico em que a Encíclica é produzida e divulgada. Havia forte receio de que a revolução operária efetivamente ocorresse, permitindo a construção de uma sociedade que desafiasse a lógica do Capital. Por isso, a Igreja manifesta-se na Encíclica, referindo: “Os Socialistas, para curar este mal, instigam nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem, e pretendem que toda a propriedade de bens particulares deve ser suprimida, que os bens dum indivíduo qualquer devem ser comuns a todos, e que a sua administração deve voltar para os Municípios ou para o Estado. Mediante esta transladação das propriedades e esta igual repartição das riquezas e das comodidades que elas proporcionam entre os cidadãos, lisonjeiam-se de aplicar um remédio eficaz aos males presentes. Mas semelhante teoria, longe de ser capaz de pôr termo ao conflito, prejudicaria o operário se fosse posta em prática. Pelo contrário, é sumamente injusta, por violar os direitos legítimos dos proprietários, viciar as funções do Estado e tender para a subversão completa do edifício social”. Disponível em http://www.vatican.va/holy_ father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html, acesso em 09/4/2014. 

 

[5] DIAS, Everardo. História das Lutas Sociais no Brasil. 2a edição. São Paulo: Alfa-ômega, 1977.

 

[6] Para discutir o anteprojeto da regulamentação da lei da jornada, que acabou sendo sancionado em 1925, o Conselho Nacional do Trabalho realizou uma conferência com os representantes dos interessados (associações patronais, de empregados e de operários). Mesmo reconhecendo uma manobra política para prestigiar o governo e legitimar a legislação trabalhista, os representantes do Partido Comunista participaram da conferência, para “demonstrar aos olhos das massas, que a colaboração e a harmonia entre patrões e operários são impraticáveis na realidade”. PINHEIRO, Paulo Sérgio. HALL, Michael M. A Classe Operária no Brasil. 1889-1930. Documentos. V. I. O Movimento Operário. São Paulo: FUNCAMP, 1979, p. 300.

 

[7] Em 1926, é aprovado o Código de menores, que limita jornada dos operários com menos de 18 anos a 6 horas por dia, com repouso de uma hora para descanso e alimentação. O Decreto   n. 21.186 de 1932, sobre o horário de trabalho do comércio; o Decreto n. 21.364 também de 1932, sobre a limitação do trabalho na indústria; Decreto n. 22.979 de 1933, sobre trabalho em barbearias e congêneres; Decreto n. 23.084 de 1933, sobre o trabalho em farmácias, o Decreto 23.104 de 1933, sobre o trabalho na indústria de panificação, além de outros. CATHARINO, José Martins. Compêndio de direito do trabalho. V. 2. 2a edição. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 122.

 

[8] GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p. 109.

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2017