NOTAS ACERCA DA REPARAÇÃO DE DANOS EXTRAPATRIMONIAIS PREVISTA NA LEI 13.467/17

 

 

 

JOSÉ FELIPE LEDUR

Desembargador do Trabalho Aposentado, Vice-Editor da Revista da Escola Judicial do TRT4 e Doutor em Direito do Estado.

 

 

 

Palavras-chave: Lei 13.467/17 e intervenção em direitos fundamentais; violação à Constituição e interpretação conforme aos direitos fundamentais; direitos da personalidade; dignidade da pessoa; igualdade de tratamento; postulado da proporcionalidade; numerus clausus das violações passíveis de reparação extrapatrimonial; indenização tarifada; violação à Constituição e interpretação conforme aos direitos fundamentais.

 

 

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. REGRAS APLICÁVEIS À REPARAÇÃO DE DANOS EXTRAPATRIMONIAIS. INCONSTITUCIONALIDADE; 3. DIREITOS DA PERSONALIDADE OBJETOS DE PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL E A LEI 13.467/17; 4. CONFORMAÇÃO E RESTRIÇÃO A DIREITO FUNDAMENTAL. INCONSTITUCIONALIDADE DA TARIFAÇÃO DO § 1º DO ART. 223-G DA CLT; 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS

 

 

 

1. INTRODUÇÃO

 

Para determinar o conteúdo normativo de uma lei o jurista não deve desconhecer seu sentido e valor histórico originário. Também por isso, a ele se impõe a não-sujeição àquilo que os protocolos parlamentares possam lhe ensinar a respeito das intenções dos que elaboraram a lei (GADAMER, 1977, p. 399).

 

A Lei 13.467/17, é sabido, foi aprovada com rapidez inaudita para restringir os níveis de proteção jurídica até então assegurados aos trabalhadores. Menos evidente restou outra intenção oculta: atingir de maneira reflexa o sistema de direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal (CF), nele abarcados os direitos clássicos e aqueles reservados aos trabalhadores. É exatamente por isso que as novas regras exigem exame estrito quanto a sua adequação à ordem jurídico-constitucional.

 

Com a edição dessa lei, os arts. 223-A a 223-G passam a conformar o Título II-A da CLT, que trata do dano extrapatrimonial. Regulações especiais voltadas à proteção dos direitos da personalidade do trabalhador e sua reparação, se violados, mostram-se necessárias. As mudanças que, sob a influência das alterações tecnológicas, se verificam nas relações de trabalho potencializam os agravos à personalidade do trabalhador. Entretanto, as novas regras legais passam ao largo de danos causados pelo uso da tecnologia. E contêm grande potencial lesivo a direitos da personalidade tradicionais dos trabalhadores.

 

Já no início desse conjunto de regras a lei estabelece no art. 223-A que, nas relações de trabalho, aplicam-se à reparação por danos de natureza extrapatrimonial apenas (grifei) os dispositivos do Título. Segue disposição (art. 223-B) que estabelece esfera moral ou existencial cuja violação por ação ou omissão causa dano extrapatrimonial. Aparentemente, busca restringir o direito à reparação ao titular originário. Depois, vêm as regras que contêm numerus clausus de bens jurídicos da pessoa física e jurídica que ensejariam indenização (arts. 223-C e D). A grande novidade da lei está no art. 223-G, que estipula a tarifação das reparações extrapatrimoniais com base no salário do trabalhador, além de impor limite máximo às indenizações devidas.

 

O presente trabalho em princípio devia ter como foco principal a inovação trazida no § 1º do art. 223-G no que tange à quantificação do dano extrapatrimonial. Entretanto, uma questão preliminar relevante tem de ser enfrentada, qual seja, se a letra do art. 223-A tem como prevalecer quando pretende impor o exame exclusivo dos direitos da personalidade do trabalhador e as reparações a danos extrapatrimoniais com base, unicamente, nas inovações trazidas pela Lei 13.467/17. O conteúdo do art. 223-B, bem como os bens jurídicos protegidos pelo Direito que ensejam a reparação dos danos extrapatrimoniais (arts. 223-C e D) também serão examinados com brevidade.

 

Deve-se referir que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) da ADI 5870, ajuizada pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (ANAMATRA), e a ADI 6069, ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). A primeira ação visa a declaração de inconstitucionalidade do art. 223-G e a segunda, a declaração de inconstitucionalidade dos arts. 223-A e 223-G da Lei 13.467/17. Os processos encontram-se apensados e o julgamento está previsto para o dia 04 de junho de 2020.

 

Por fim, o método de trabalho será basicamente o dedutivo, mediante o exame de algumas das regras introduzidas no ordenamento pela Lei 13.467/17 em contraste com princípios e regras constitucionais, de modo a se aferir sua compatibilidade ou não com a Constituição. O texto também busca refletir acerca das soluções que o Direito oferece a seu intérprete e aplicador para solver os problemas que a aplicação da lei referida traz.

 

2. REGRAS APLICÁVEIS À REPARAÇÃO DE DANOS EXTRAPATRIMONIAIS. INCONSTITUCIONALIDADE

 

O art. 223-A da CLT, introduzido pela Lei 13.467/17, assim estabelece: Aplicam-se à reparação de danos de natureza extrapatrimonial decorrentes da relação de trabalho apenas os dispositivos deste Título. (destaquei)

 

A ordem jurídica não se constitui de compartimentos estanques. Os diversos ramos do Direito mantêm conexão entre si e encontram no sistema de direitos e garantias fundamentais um referencial comum. Na hipótese precisa do Direito do Trabalho e de regulações concernentes a direitos da personalidade do trabalhador, com maior razão ele deve-se abrir para outras disciplinas, especialmente os direitos fundamentais, uma vez que o Estado brasileiro está vinculado ao seu reconhecimento e ao dever de promovê-los na esfera privada.  

 

A leitura da regra sob escrutínio enseja a conclusão de que os seus formuladores pretendem o retorno a concepções defendidas pela Escola da Exegese do século XIX. Segundo ela, não há direito fora da lei, e o intérprete deve ater-se à vontade do legislador. MATEUS DA SILVA (2017, p. 64) ressalta que o art. 223-A tem a pretensão de tudo abarcar ao determinar que somente existem danos extrapatrimoniais nas relações de trabalho nos limites do Título II-A. De fato, o legislador não cumpre adequadamente sua função se, em lugar de legislar com a atenção voltada para diversidade e natural mudança dos fatos da vida social, tiver a intenção de aprisioná-los, subtraindo do intérprete os meios necessários para adequar a lei ao Direito.

 

É preciso sublinhar que a partir de 1988 o Direito do Trabalho brasileiro tem seu núcleo no sistema especial de direitos fundamentais dos trabalhadores (art. 7º e ss. da CF). Direitos fundamentais individuais, coletivos e sociais ali elencados formam uma unidade, pelo que o sistema especial de direitos fundamentais dos trabalhadores integra o sistema geral de direitos fundamentais da CF, o qual irradia eficácia sobre o ordenamento infraconstitucional. É a Constituição que vincula a atividade legislativa, executiva e judiciária.

 

Diante do que se escreveu, sobrevém o problema da interpretação e aplicação do art. 223-A da CLT, bem como de sua harmonização com a ordem constitucional.

 

O caráter terminante da regra não proporciona sua interpretação conforme à Constituição ou, mais precisamente, conforme aos direitos fundamentais. Esse método de interpretação, largamente utilizado para conformar a lei às diretrizes, princípios e valores constitucionais, é utilizado especialmente em caso de cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados, ou seja, quando um mesmo texto infraconstitucional pode ensejar diferentes interpretações dando origem a mais de uma norma. Nessa hipótese, há de se eleger a que for mais consentânea com os direitos fundamentais, sem a necessidade da exclusão do texto do ordenamento jurídico.

 

Na hipótese em apreço, a utilização dessa técnica resta inviabilizada porque o teor definitivo do texto leva a concluir que nele não há espaço para mais de uma norma. E ao intérprete não é dado pôr “outra norma” no lugar da que resulta do texto. Isso porque

 

“quando a diretiva expressa nos direitos fundamentais pede uma nova determinação do preceito infraconstitucional sob interpretação, para que com eles possa ser afirmada sua conformidade, então se trata de hipótese de inconstitucionalidade, e não mais de interpretação” (LEDUR, 2009, p. 38).

 

Assim, é o exame da constitucionalidade ou não do art. 223-A da CLT que se impõe. Importa referir que, muito embora as leis em geral gozem da presunção de constitucionalidade, o sistema de controle difuso adotado no Brasil permite o exame judicial, de ofício, da adequação do direito infraconstitucional à Constituição. E isso em qualquer instância judicial.

 

O direito dos trabalhadores à reparação por danos extrapatrimoniais, conquanto não regrado pela CLT antes da Lei 13.467/17, encontra na CF de 1988 seu fundamento normativo e obteve conformação infraconstitucional em regras do Código Civil. Aqui é relevante fixar que essa reparação não encontra seu fundamento primário em direito que se origina da “relação de trabalho”, mas em direito que lhe é anterior, qual seja, o direito da personalidade reconhecido pela CF a toda pessoa porque portadora de dignidade. A dignidade da pessoa mantém relação sistemática com direitos de liberdade e de igualdade, direitos fundamentais que correspondem a “direito natural positivado” anterior ao Estado, o qual está obrigado a justificar as restrições que pretenda a eles impor. E a ação estatal que atinge a dignidade das pessoas deve atenção ao valor que lhes é ínsito por força dessa condição (PIEROTH/SCHLINK, 2010, p. 13 e 86-7).

 

A proteção aos direitos da personalidade dos titulares de direitos fundamentais em geral, inclusive no que diz respeito à indenização devida se violados, é reconhecida em série de direitos de liberdade previstos no art. 5º da CF, especialmente em seus incisos V e X. Esses direitos obtiveram conformação geral nos arts. 11 a 21 do Código Civil. Já em seu Título IX, cuida da responsabilidade civil, ali estabelecendo série de regras que tratam da obrigação de indenizar, inclusive o dano moral (arts. 927 e ss.), e da indenização (arts. 944 e ss.).

 

Portanto, a Constituição e a configuração infraconstitucional por meio de regras do Código Civil contêm a fonte normativa que ao longo dos anos ensejou o reconhecimento do direito à reparação por danos morais à generalidade das pessoas, inclusive àqueles que ocorrem no desenvolvimento das relações de trabalho ou de emprego. É por isso que a normatização especial agora dirigida a reparações oriundas de relações de trabalho não tem como ignorar ou excluir de incidência o sistema geral de proteção aos direitos da personalidade estruturado na CF e na conformação infraconstitucional que lhe deu o Código Civil.

 

Para efeito de comparação, a partir de 2003 enunciaram-se no Código do Trabalho de Portugal direitos da personalidade do trabalhador sujeitos a proteção especial. Segundo doutrina de Guilherme Machado Dray (2015, p. 230), nem por isso deixam de ser atendidos os direitos da personalidade positivados na Constituição e no sistema de tutela geral e especial previsto no Código Civil português.

 

Por tudo isso, a regra excludente inserta no art. 223-A da CLT importa violação ao princípio da dignidade da pessoa e suas projeções nos direitos da personalidade protegidos pela Constituição.

 

A igualdade e seu corolário, que é a não-discriminação, é outro princípio constitucional violado pela regra sob exame. O teor terminante, definitivo, da expressão “apenas” prevista na regra legal subtrai os direitos da personalidade dos trabalhadores e a reparação de eventuais danos da incidência de direitos fundamentais e de sua conformação pelo direito civil. Cabe aqui reportar decisão do Tribunal Constitucional Federal alemão, para quem o princípio da igualdade proíbe que se trate “o essencialmente igual de maneira arbitrariamente desigual” (PIEROTH/SCHLINK, 2012, p. 208-9). Quer isso dizer que uma discriminação só é admissível se justificada jurídico-constitucionalmente. Conclui-se que a regra legal sob exame viola a igualdade de tratamento em razão da condição de pessoa, pressuposto da reparação devida por causa de danos extrapatrimoniais.

 

O princípio da proporcionalidade (também designado como método de interpretação ou postulado), cujo fundamento a doutrina constitucional identifica no Estado de Direito e sobretudo no conjunto dos direitos fundamentais, também sofre violação por meio do art. 223-A. Os elementos que integram esse postulado são a adequação, a necessidade e a justiça em sentido estrito de regras infraconstitucionais dirigidas a dar conformação ou a estabelecer restrições a direitos fundamentais. Esses elementos supõem a existência de “limites aos limites”, quer dizer, o legislador em sua atividade interventiva nos direitos fundamentais está sujeito a limites.

 

No caso em apreço, a regra legal não resiste ao exame da adequação, segundo a qual o meio utilizado (a lei) deve promover o fim por ela visado (no caso, a proteção de direito fundamental por meio da reparação do dano extrapatrimonial). O meio revela-se inadequado para os fins que em princípio deveria promover porque não confere tratamento “sob medida” à matéria, uma vez que exclui de incidência justamente a fonte normativa dos direitos da personalidade – a Constituição –, como também a conformação infraconstitucional em termos gerais desses direitos no Código Civil, dirigida sem exceção a todas as pessoas.

 

Diante dos fundamentos que foram desenvolvidos nos parágrafos precedentes, a declaração de inconstitucionalidade do art. 223-A da CLT se impõe pelos fundamentos que seguem, sem prejuízo de outros: 1) há violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa e seu desdobramento em direitos da personalidade que se exteriorizam em série de direitos fundamentais reconhecidos na Constituição e na configuração infraconstitucional que o legislador lhe deu, sobretudo no Código Civil; 2) a regra em referência viola o princípio constitucional da igualdade ao discriminar negativamente, sem justificação jurídico-constitucional, os trabalhadores mediante a subtração de seus direitos da personalidade da incidência de direitos fundamentais e de sua conformação pelo direito civil; 3) o postulado da proporcionalidade, que ocupa centralidade no sistema de direitos fundamentais, é inobservado pela regra sob exame porque ela busca restringir a incidência de princípios e regras de direito àquelas expressas na CLT.

 

3. DIREITOS DA PERSONALIDADE OBJETOS DE PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL E A LEI 13.467/17

 

O art. 223-C da CLT, redação da Lei 13.467/17, dispõe: “A honra, a imagem, a intimidade, a liberdade de ação, a autoestima, a sexualidade, a saúde, o lazer e a integridade física são os bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa física.” E o art. 223-D estabelece: “A imagem, a marca, o nome, o segredo empresarial e o sigilo da correspondência são bens juridicamente tutelados inerentes à pessoa jurídica.”

 

Consoante já visto, considera-se incompatível com a Constituição a expressão “apenas” prevista no art. 223-A da CLT porque importa a violação do princípio da dignidade da pessoa e sua concreção nos direitos fundamentais  dos incisos V, X e XII do art. 5º e da conformação que obtiveram no Código Civil, bem como do princípio da igualdade e do postulado da proporcionalidade, conforme item 2 deste texto. A consequência dessas violações é a inconstitucionalidade do art. 223-A.

 

Diante disso, sobrevém a impossibilidade de se reconhecer caráter de numerus clausus à regra do art. 223-C, como aparentemente pretendido pelo legislador. Isso pelas razões que seguem, sem excluir outras.

 

Primeiramente, a intenção do legislador foi a de criar um número hermético de hipóteses autorizadoras da reparação extrapatrimonial em favor do trabalhador. Não fosse esse o intento, não teria utilizado a expressão “são os bens jurídicos” (grifei). Observe-se que ao tratar da reparação devida à pessoa jurídica no art. 223-D a redação restritiva desaparece na medida em que ali se refere “são bens jurídicos”... E aqui a regra aberta mantém-se cônsona com a Constituição, mesmo porque há outras hipóteses que não as referidas na regra que permitem a reparação extrapatrimonial, como por exemplo a lesão ou o dano em razão da nacionalidade da pessoa jurídica (MATEUS DA SILVA, 2017, p. 65).

 

Em segundo lugar, há contradição insuperável no conjunto de regras que deu lugar ao atual Título II-A da CLT. De fato, o art. 223-B inclui a existência entre os bens jurídicos do trabalhador sujeitos a danos e, por consequência, à reparação. Entretanto, o art. 223-C não menciona a existência e suas possíveis manifestações entre os bens jurídicos inerentes à pessoa física sujeitos à proteção.

 

É necessário dizer que o dano à existência não se restringe à saúde, ao lazer ou à integridade física referidos no art. 223-C. Ele diz respeito, também, a outros bens jurídicos, como o livre desenvolvimento da personalidade que se projeta no livre exercício de trabalho, ofício ou profissão de que trata o inciso XIII do art. 5º da CF. Ali garante-se um direito fundamental clássico, de liberdade, situado fora do catálogo dos direitos fundamentais dos trabalhadores, mas ainda assim essencial para quem vive do trabalho. Esse direito fundamental tem seu exercício comprometido, por exemplo, se o trabalhador é submetido regularmente a jornadas que excedam o limite de duas horas extras diárias estabelecido no art. 59 da CLT, porque inviabiliza o cuidado que ele necessita dedicar a sua formação e a outros âmbitos vitais.

 

No direito comparado, observa-se que o Código do Trabalho português de 2003, com alterações posteriores, inclui a liberdade de expressão e opinião no local de trabalho, o direito à integridade física e moral, o direito à reserva da intimidade da vida privada, a proteção de dados pessoais, o tratamento de dados biométricos, a proteção contra testes e exames médicos, a regulação de meios de vigilância à distância e o direito de reserva e confidencialidade das mensagens pessoais entre os direitos da personalidade sujeitos à proteção (DRAY, 2015, p. 116). Há nesse rol direitos de liberdade tradicionais, mas também direitos que protegem o indivíduo diante de interferências oriundas do uso da tecnologia, aspectos que o legislador brasileiro ignorou, muito embora a promessa ao redor da modernização que a reforma trabalhista traria.

 

Em terceiro lugar, na regra sob exame há outra ausência notável, que é a vida privada, direito fundamental contemplado no art. 5º, X, da CF. É relevante frisar que a privacidade é direito muitas vezes sujeito a investidas patronais no local de trabalho quando o empregador, em conduta incompatível com os limites do poder de direção, impõe modos de apresentação pessoal ou o uso de vestes, impede o uso de adereços, pretende impor manifestações religiosas que o trabalhador não está obrigado a observar no âmbito laboral, ou quando instala câmeras de observação que violam a privacidade do empregado. São circunstâncias que respeitam ao direito à privacidade, cujo âmbito de proteção envolve condutas pessoais que o titular do direito, legitimamente, põe a salvo da curiosidade ou da interferência alheia. Ademais, é sabido que a velocidade e intensidade do uso da tecnologia na introdução de produtos e processos traz consigo riscos ao particular que exigem a proteção estatal. E essas mudanças podem acarretar aos direitos da personalidade perigos até agora desconhecidos (PIEROTH/SCHLINK, 2012, p. 74-5 e 179), razão por que o rol legal de bens jurídicos inerentes à pessoa física está em descompasso com a realidade.

 

As lacunas referidas, e mesmo situações causadoras de danos ora desconhecidas, evidenciam que às regras dos arts. 223-C e D é inviável atribuir caráter de numerus clausus. Já a declaração de inconstitucionalidade não é solução para os arts. 223-C e D. Observada a premissa estabelecida no item 2, de que a expressão restritiva do art. 223-A acarreta a sua inconstitucionalidade, decorre que ao intérprete cabe verificar se há norma nos textos legais que seja conforme aos direitos fundamentais. E pelo que se fundamentou, a interpretação que reconhecesse caráter taxativo não se harmonizaria com os direitos fundamentais, diversamente de interpretação que reconhece a existência de outros direitos da personalidade passíveis de reparação extrapatrimonial se violados.

 

A interpretação que melhor expressa os direitos fundamentais, portanto, é a que admite a existência de outras situações lesivas à dignidade do trabalhador e correspondentes direitos da personalidade não arrolados nas regras sob interpretação, e que demandam igual reparação se violados na fase pré-contratual, contratual ou pós-contratual.

 

Portanto, mediante interpretação conforme aos direitos fundamentais não se limita aos bens jurídicos nominados nos arts. 223-C e D da CLT a fonte do direito à reparação extrapatrimonial devida ao trabalhador.

 

4. CONFORMAÇÃO E RESTRIÇÃO A DIREITO FUNDAMENTAL. INCONSTITUCIONALIDADE DA TARIFAÇÃO DO § 1º DO ART. 223-G DA CLT

        

Os direitos fundamentais pertencem a todas as pessoas naturais; eventualmente podem ensejar a titularidade de pessoas jurídicas. A multiplicidade de titulares, todos legitimados a exercitar esses direitos, tem a virtualidade de conduzir a colisões. Se não solvidas no próprio texto constitucional, podem exigir a intervenção do legislador (em menor grau, do próprio juiz), de modo a estabelecer restrições ao seu exercício ou uso. Essas restrições não têm a finalidade de esvaziar o conteúdo, o âmbito de proteção desses direitos. Ao contrário, visam assegurar o exercício ou o uso dos direitos por todos os titulares. Portanto, a pretexto de limitar o exercício do direito, a restrição não pode levar ao esvaziamento de seu âmbito de proteção.

        

Algo similar ocorre com a conformação de direitos fundamentais com âmbito de proteção normativo, como os direitos fundamentais clássicos de propriedade e de sucessão. O mesmo ocorre com as indenizações alusivas à perda sem justa causa do emprego (indenização compensatória, seguro-desemprego e proporcionalidade do aviso-prévio), asseguradas, respectivamente, nos incisos I, II e XXI do art. 7º da CF. Nesses casos, a conformação ou configuração infraconstitucional é em princípio requerida para permitir o exercício ou uso eficaz do direito pelo titular. Também aqui não se justifica que, a pretexto de dar conformação a um direito fundamental, o legislador nele intervenha impondo-lhe restrições que esvaziem seu âmbito de proteção e atinjam o exercício ou o uso eficaz do direito.

        

Aspecto adicional diz respeito à existência de direitos fundamentais que podem exigir restrições que propiciem o exercício por todos os titulares e ao mesmo tempo demandem conformação parcial destinada a permitir o exercício ou uso pleno. Assim, há direitos fundamentais que tanto podem exigir restrições como conformação ou configuração infraconstitucional.

        

Direitos da personalidade são direitos fundamentais clássicos, anteriores ao próprio Estado de Direito, característica que exige o reconhecimento da existência prévia, natural, desses direitos, consoante destacado no item 2. Eles são passíveis de exercício sem mais, ou seja, em princípio não carecem de conformação. Mas é a sua violação ou lesão que requer do legislador providências no sentido de permitir ao titular a reparação devida quando o Estado ou particulares inviabilizam o exercício.

 

A configuração infraconstitucional a direitos fundamentais da personalidade implementada pela Lei 13.467/17, sobretudo na parte alusiva à reparação extrapatrimonial, traduz, pelo menos parcialmente, a imposição de restrições. A pretexto de configurar ou conformar, o legislador restringe, o que é repelido pela dogmática jusfundamental.

 

Os critérios que o art. 223-G estabelece na parte inicial para o juiz fixar o montante indenizatório mantêm conformidade com a doutrina e jurisprudência. Não há aqui ressalva a ser feita, a não ser a consideração de que esses critérios são enunciativos e não exclusivos justamente em razão da inconstitucionalidade acima definida no que diz respeito à expressão “apenas” inserta no art. 223-A. Por isso, de par com os referidos critérios, eventualmente o juiz poderá encontrar elemento adicional a ser ponderado quando da fixação do quantum devido a título de reparação extrapatrimonial.

 

Os problemas sobrevêm diante dos parâmetros estabelecidos nos incisos I a IV do § 1º do art. 223-G da CLT.

        

Consoante se fixou no item 2, o legislador atuou contrariamente aos princípios da dignidade da pessoa e da igualdade, e sem a adequação exigida pelo postulado da proporcionalidade, ao definir o direito à reparação extrapatrimonial tomando como referência a condição de trabalhador em lugar da pessoa do titular do direito. Isso agora resta flagrante quando se observa que os incisos I a IV do § 1º do art. 223-G limitam a reparação máxima a número determinado de salários contratuais. Há aqui um teto indenizatório que viola o princípio da reparação integral expresso no art. 944 do Código Civil, que adequadamente conforma o direito à reparação ao passar ao largo de questões como a culpa ou a intenção do agente causador do dano.

 

Além disso, a estipulação do salário do trabalhador como referência para aquilatar a reparação extrapatrimonial abre caminho para o seu tratamento discriminatório ante outros credores. A doutrina se ocupa vastamente da identificação de hipóteses em que o mesmo dano pode acarretar reparações diversas, a depender da condição salarial ou econômica dos trabalhadores atingidos no âmbito da empresa (ANDREOTTI, 2019, p. 172-3) ou mesmo da circunstância de a vítima ser ou não empregada.

 

A violação a direitos fundamentais surge à primeira vista porque é sabido que a dignidade da pessoa não se mede pela expressão alcançada por seu salário (a dignidade está acima de todo o preço, segundo a conhecida fórmula kantiana). De outro lado, é de imediata apreensão que a presença de vários ofendidos, com salários contratuais diversos, levará a reparações diversas diante de dano idêntico sofrido pelos trabalhadores. A infringência ao princípio da igualdade não exige maiores demonstrações. Finalmente, a inadequação e a ausência de justiça em sentido estrito da restrição ao direito (e não da sua conformação) saltam aos olhos, a revelar ausência de proporcionalidade na fórmula adotada pelo legislador.

 

De tudo isso extrai-se a conclusão que a tarifação introduzida pelo legislador para supostamente conformar o direito à reparação extrapatrimonial diante de danos morais na prática importa restrições que interferem indevidamente no âmbito de proteção dos direitos da personalidade do trabalhador. Em lugar de proporcionar o uso ou exercício eficaz do direito, é a restrição a ele que sobressai da obra do legislador. Vale lembrar que a chamada “Lei de Imprensa”, editada na ditadura, e que continha a tarifação do dano moral, foi derrogada pela Constituição, consoante decisão do STF, em 2009, no julgamento da ADPF 130/DF. Essa decisão serve de paradigma para o tratamento jurídico da tarifação ora sob exame (RITZEL e KÜMMEL, 2019, p. 74-6)

 

Por causa do caráter matemático dos critérios estabelecidos no § 3º do art. 423-G, e também da exclusão da cumulação do direito à reparação se houver mais de um agravo ao direito da personalidade, não há espaço para norma que expresse os direitos fundamentais. Daí por que a interpretação conforme não é a solução para o impasse, conforme reportado no item 2, supra.

 

Em síntese, a declaração de inconstitucionalidade melhor soluciona os problemas trazidos pela má atividade legislativa em vista da infringência aos princípios da dignidade da pessoa e da igualdade, bem como do postulado da proporcionalidade.

 

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A síntese do presente texto conduz a conclusões que põem em xeque aspectos da Lei n. 13.467/17 que se relacionam à regulamentação, em Título próprio da CLT, do dano extrapatrimonial indenizável na esfera das relações do trabalho.

 

Primeiramente, considerou-se que o art. 223-A contém restrição em seu texto – a palavra “apenas” – que não permite ao intérprete tergiversar quando tiver de resolver litígios envolvendo a reparação extrapatrimonial de dano havido no âmbito da relação de trabalho. E como a restrição em apreço não comporta a possibilidade de se conferir interpretação diversa a sua literalidade, o intérprete e aplicador está diante da necessidade de examinar a sua constitucionalidade.

 

Em atenção ao fato de a reparação dos danos à personalidade estar assentada na dignidade da pessoa e correlatos direitos da personalidade que não são condicionáveis pela relação de trabalho porque lhe são anteriores; porque o art. 223-A viola o princípio da igualdade; e porque o postulado da proporcionalidade resta vulnerado diante da inadequação da regra legal aos fins que deveria promover, a declaração de inconstitucionalidade é impositiva.

 

De outro lado, a interpretação conforme aos direitos fundamentais permite identificar mais de uma norma nos arts. 223-C e D, pois portadoras de norma que melhor expressa os direitos fundamentais, ou seja, a que identifica caráter meramente enunciativo nas regras infraconstitucionais mencionadas.

 

Finalmente, o art. 223-G, na parte em que estabelece a quantificação da reparação extrapatrimonial, por meio do salário contratual e de teto indenizatório, viola tanto os princípios da dignidade da pessoa e da igualdade como também o postulado da proporcionalidade.

 

REFERÊNCIAS

 

ANDREOTTI, Caroline Vencato. A inconstitucionalidade dos parâmetros de quantificação do dano imaterial previstos no § 1º do art. 223-G da CLT. Revista da Escola Judicial do TRT4, Porto Alegre, v. 1, n. 2, jul./dez. 2019, p. 159-83.

 

BRASIL. Constituição Federal de 1988.

 

BRASIL. Código Civil Brasileiro de 2002.

 

GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método. 5ª ed., Salamanca:  Ediciones Sígueme, v. 1, 1993.

 

LEDUR, José Felipe. Direitos fundamentais sociais: efetivação no âmbito da democracia participativa. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

 

DRAY, Guilherme Machado. O princípio da proteção do trabalhador. São Paulo: LTr, 2015.

 

MATEUS DA SILVA, Homero Batista. Comentários à reforma trabalhista: análise da Lei 13.467/2017 – artigo por artigo. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.

 

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte – Staatsrecht II. 26ª ed., Heidelberg: C. F. Müller, 2010.

 

PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos Fundamentais. Tradução de António Francisco de Souza e António Franco.  São Paulo: Saraiva, 2012.

 

RITZEL, Guilherme Sebalhos; KÜMMEL, Marcelo Barroso. O dano moral extrapatrimonial da nova CLT: uma analogia com a inconstitucionalidade do dano moral tarifado da Lei de Imprensa. Revista da Escola Judicial do TRT4, Porto Alegre, v. 1, n. 2, jul./dez. 2019, p. 63-89.

 

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