SUCUMBÊNCIA E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS NA JUSTIÇA DO TRABALHO:

UMA ADEQUADA INTERPRETAÇÃO DO § 3.O DO ART. 791-A, DA CLT

 

MANOEL ANTONIO TEIXEIRA FILHO

Juiz do Trabalho aposentado. Professor do curso de Pós-Graduação na Faculdade de Direito de Curitiba. Membro do Instituto Latinoamericano de Derecho del Trabajo y de la Seguridad Social; da Société Internacionale de Droit du Travail et de la Sécurité Sociale; do Instituto dos Advogados do Paraná; da Academia Nacional de Direito do Trabalho e da Academia Paranaense de Letras Jurídicas. Autor de 21 livros sobre Processo do Trabalho, de uma coleção de opúsculos sobre Processo do Trabalho, de um Curso completo sobre Processo do Trabalho e de uma coleção de cadernos sobre Processo Civil, além de diversos artigos publicados em revistas especializadas. Agraciado com a Comenda \"Ordem das Araucárias\", pelo TRT-Paraná.

 

SUMÁRIO: I – Considerações introdutórias; II – A adequada interpretação do § 3.o do art. 791-A, da CLT; III – O Projeto de Lei n.o 409/21

 

I – Considerações introdutórias

1. Certa feita, afirmei no preâmbulo de um dos meus livros que havia em nosso País uma perversa tradição, consistente na elaboração de normas legais destinadas não a pacificar situações tumultuadas, mas, ao contrário, a tumultuar situações pacificadas.

 

A Lei n.o 13.467, de 13-7-2017, que introduziu diversas alterações nos direitos material e processual do trabalho -- configurando a denominada Reforma Trabalhista --, está a evidenciar que aquela minha afirmação não perdeu a atualidade.

Dentre as modificações impostas ao processo do trabalho por essa Lei, uma, em particular, acarretou profundo impacto na realidade e instaurou intenso desassossego no espírito dos jurisdicionados, designadamente, no dos trabalhadores. Refiro-me ao art. 791-A, da CLT, introdutor do princípio da sucumbência em tema de honorários advocatícios.

Para que possam ser bem compreendidas as razões da opinião que manifestarei, mais adiante, em relação ao assunto, torna-se conveniente empreender um voo, ainda que breve, em direção ao passado.

2. Quando a CLT foi elaborada, estava e viger o CPC de 1939, o primeiro estatuto processual civil unitário que o nosso País conheceu.  Até então, os Estados-membros detinham competência para legislar sobre matéria processual. O Código de 1939 estampava, no caput do art. 64, o princípio da sucumbência, assim enunciado: “a sentença final(sic) na causa condenará a parte vencida ao pagamento dos honorários do advogado da parte vencedora (...)”.

3. Ao legislador trabalhista do período teria sido muito cômodo transportar para o texto da CLT o mesmo princípio, pastichando, inclusive, o precitado CPC. Houve, entretanto, por parte do legislador de 1943 um silêncio acerca do tema. Neste momento, torna-se oportuno e necessário esclarecer que o silêncio dos legisladores em geral pode decorrer de duas atitudes: a primeira é produto da inadvertência: o legislador deveria ter-se pronunciado a respeito de um assunto, mas não o fez: o caso, aqui, é de omissão; a segunda, entretanto, é consequência de uma intenção implícita: nada disse sobre o assunto, porque não desejou dizer: aqui, a intenção é sinônimo de rejeição, do veto subentendido. Esta última atitude foi adotada pelo legislador de 1943, no tocante ao princípio da sucumbência em matéria de honorários de advogado, disciplinada pelo art. 64 do estatuto processual civil de 1939.

4. A primeira vez que se veio a falar nesses honorários, nos sítios do processo do trabalho legislado, foi por obra da Lei n.o 5.584, de 26-6-1970. Essa norma legal, dentre outras disposições, atribuiu aos sindicatos representativos das categorias profissionais o encargo de ministrar assistência judiciária gratuita aos trabalhadores que recebessem salário mensal igual ou inferior ao dobro do mínimo legal (art. 14, § 1.o). Como contrapartida pelos encargos financeiros daí decorrentes, o mencionado preceptivo legal estabeleceu: “Os honorários do advogado, pagos pelo vencido, reverterão em favor do Sindicato assistente” (art. 16).

4. Em que pese ao fato de a sobredita norma legal aludir a honorários do advogado, a praxe trabalhista, com sua peculiar criatividade, cuidou, em muitos momentos, de substituir essa expressão por honorários assistenciais, à consideração de que o titular do direito à mencionada verba não era, em rigor, o advogado, e sim, a entidade sindical que estava ministrando assistência judiciária gratuita ao trabalhador. Idiossincrasias terminológicas à parte, o fato concreto é que a Lei n.o 5.584/70 abriu uma justificável exceção à regra da inaplicabilidade do princípio da sucumbência no sistema do processo do trabalho.

5. Tempos depois, o TST, em consonância com a legislação vigente no período, adotou, pela Resolução n.o 14/1985, a Súmula n.o 219, de sua jurisprudência uniforme, com este teor:

“Na Justiça do Trabalho, a condenação ao pagamento de honorários advocatícios, nunca superiores a 15% (quinze por cento), não decorre pura e simplesmente da sucumbência, devendo a parte estar assistida por sindicato da categoria profissional e comprovar a percepção de salário inferior ao dobro do salário mínimo ou encontrar-se em situação econômica que não lhe permita demandar sem prejuízo do próprio sustento ou da respectiva família”. 

Ao longo dos anos, a citada Súmula sofreu alterações, estando assim enunciada nos dias atuais, ex vi da Resolução n.o 204/2016:

HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.  CABIMENTO (alterada a redação do item I e acrescidos os itens IV a VI em decorrência do CPC de 2015) - Res. 204/2016, DEJT divulgado em 17, 18 e 21.03.2016 

I - Na Justiça do Trabalho, a condenação ao pagamento de honorários advocatícios não decorre pura e simplesmente da sucumbência, devendo a parte, concomitantemente: a) estar assistida por sindicato da categoria profissional; b) comprovar a percepção de salário inferior ao dobro do salário mínimo ou encontrar-se em situação econômica que não lhe permita demandar sem prejuízo do próprio sustento ou da respectiva família. (art.14, §1º, da Lei nº 5.584/1970). (ex-OJ nº 305da SBDI-I).

II - É cabível a condenação ao pagamento de honorários advocatícios em ação rescisória no processo trabalhista.

III – São devidos os honorários advocatícios nas causas em que o ente sindical figure como substituto processual e nas lides que não derivem da relação de emprego.

IV – Na ação rescisória e nas lides que não derivem de relação de emprego, a responsabilidade pelo pagamento dos honorários advocatícios da sucumbência submete-se à disciplina do Código de Processo Civil (arts. 85, 86, 87 e 90).

V - Em caso de assistência judiciária sindical ou de substituição processual sindical, excetuados os processos em que a Fazenda Pública for parte, os honorários advocatícios são devidos entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa (CPC de 2015, art. 85, § 2º).

VI - Nas causas em que a Fazenda Pública for parte, aplicar-se-ão os percentuais específicos de honorários advocatícios contemplados no Código de Processo Civil.

6. Verifica-se, pelo conteúdo da Súmula, que a jurisprudência do TST ampliou as exceções à regra da inaplicabilidade do princípio civilista da sucumbência no sistema do processo do trabalho. O mais importante a ser ressaltado, todavia, é que a Súmula preservou a regra; não a anatematizou.

7.  A Emenda Constitucional n.o 45/2004 ampliou a competência da Justiça do Trabalho ao trazer para o âmbito resolutivo desta os conflitos de interesses derivantes da relação de trabalho, lato sensu, significa dizer, das relações jurídicas regidas, via de regra, pelo Direito Civil. Em razão disso, o TST, cedendo à argumentação contida nas manifestações doutrinárias da época, editou a Instrução Normativa n.o 27/2005, para dispor que, exceto nas lides oriundas da relação de emprego, seriam devidos honorários de advogado à parte vencedora “pela mera sucumbência” da vencida (art. 5.o).  Dizendo-se por outra forma: a aludida Instrução Normativa admitiu a condenação ao pagamento desses honorários n casos dos conflitos de interesses provenientes das relações de trabalho. Com isso, criou – mesmo sem pretender – uma censurável discriminação entre a natureza das lides submetidas à cognição da Justiça do Trabalho, sob a perspectiva dos honorários advocatícios.

8. Sobrevém, então, a Lei n.o 13.467, de 13-7-2017, que insere na CLT o art. 791-A, com a redação que agora reproduzimos, em parte:

“Art. 791-A. Ao advogado, ainda que atue em causa própria, serão devidos honorários de sucumbência, fixados entre o mínimo de 5% (cinco por cento) e o máximo de 15% (quinze por cento) sobre o valor que resultar da liquidação da sentença, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa.

(...)

§ 3º Na hipótese de procedência parcial, o juízo arbitrará honorários de sucumbência recíproca, vedada a compensação entre os honorários”.

 

Estava quebrada, desse modo, a antiga regra da inaplicabilidade do princípio da sucumbência no processo do trabalho. Estava deitado por terra o argumento de que inexistia norma legal prevendo a condenação ao pagamento desses honorários fora dos casos previstos na Lei n.o 5.584/1970. Estava quebrada toda uma tradição de mais de meio século. Tudo isso, num simples gesto inconsequente do legislador.

 

Tempos novos e difíceis estavam por vir, nomeadadamente, para a classe trabalhadora e para os advogados que soíam a defender em juízo. Esses tempos não se demoraram a chegar.

 

II – A adequada interpretação do § 3.o do art. 791-A, da CLT

 

9.   Doutrina e jurisprudência majoritárias, com os olhos postos no § 3.o do art. 791-A, da CLT, não hesitaram em concluir que se determinado pedido formulado pelo autor fosse acolhido em parte haveria sucumbência recíproca, de tal arte que ele e o réu seriam condenados ao pagamento de honorários advocatícios, na proporção em que ficassem vencidos em suas pretensões deduzidas na ação.

 

10. O que se viu, a partir dessa interpretação, foi algo, deveras, preocupante: o generalizado receio de o trabalhador invocar a prestação da tutela jurisdicional trabalhista, diante da possibilidade de vir a sofrer as consequências de eventual sucumbência, ainda que parcial. O trabalhador, em muitas situações, sentiu-se desestimulado a ter his day in court, a submeter à apreciação da Justiça do Trabalho a lesão de um direito ou a ameaça de lesão.  O trabalhador passou, enfim, a temer a jurisdição trabalhista. As estatísticas oficiais comprovam, de modo dramático, a redução do número de ações promovidas nos órgãos de primeiro grau dessa Justiça Especializada.

 

11. Não temos vocação à heterodoxia – malgrado também não rendamos culto à ortodoxia –, embora estejamos serenamente convencidos de que a interpretação do § 3.o do art. 791-A, da CLT, que tem prevalecido na atualidade, máxime nos sítios da jurisprudência, com suas consequências catastróficas para o trabalhador, é equivocada. Demonstremos.

 

12. Dispõe o 3.o do art. 791-A, da CLT:

 

“Na hipótese de procedência(sic) parcial, o juízo arbitrará honorários de sucumbência recíproca, vedada a compensação”.

 

O equívoco em que estão a incorrer a doutrina e a jurisprudência predominantes tem como núcleo a interpretação da expressão legal “procedência parcial”. Um e outra têm entendido que a “procedência” é quanto aos pedidos – ou, melhor: a cada pedido.  Assim, se, por exemplo, o autor formulou determinado pedido, no valor de R$ 50.000,00, mas a sentença lhe concedeu somente R$ 20.000,00, a consequência seria esta: o autor teria sucumbido em relação a R$ 30.000,00 (que deixou de ganhar), e o réu, a R$ 20.000,00 (a que foi condenado a pagar). Com base nesses valores, seriam calculados os honorários advocatícios impostos pela sentença, a cada parte, dentro dos limites legais (sem possibilidade de compensação entre eles, ressalte-se).

 

Não é essa, data venia, a nossa intepretação da referida norma legal.

 

13.  Antes de a revelarmos, há uma pergunta inquietante: os defensores da interpretação de que estamos a discrepar teriam sido, acaso, influenciados pela Fata Morgana, das lendas bretãs, que tinha o poder de distorcer as imagens que se formavam na superfície dos lagos, ou tomados por aquele pensamento desejoso (wishful thinking), de que nos falam os povos de língua inglesa, capaz de fazer com que pessoa leia não o que está escrito, e sim, o gostaria que estivesse escrito?

 

14. A expressão legal “procedência parcial”, a nosso ver, diz respeito à causa, à ação, e não, aos pedidos. Vamos ao didatismo dos exemplos. Se o autor formulou os pedidos A e B, e a sentença lhe deferiu o pedido A, mas lhe negou o B, haveria, aqui sim, “procedência parcial”, relativamente à ação, e, ao mesmo tempo, sucumbência recíproca, sob o aspecto subjetivo, pois ambos os litigantes ficaram vencidos na causa.  Ressalte-se que o fato de o autor – no exemplo que formulamos -- vir a ter, eventualmente, acolhido em parte o pedido A não configuraria a sucumbência recíproca, e sim, a sucumbência parcial, que é algo diverso. Entendemos, per summa ratio, que a condenação do autor ao pagamento de honorários advocatícios só será possível se houver sucumbência total, em relação a cada pedido. Isso significa afirmar, em sentido inverso, que se a sucumbência for parcial (insista-se: no tocante a cada postulação) não haverá condenação do autor ao pagamento desses honorários, porquanto ele não terá sido vencido na causa, senão que vencedor, ainda que em parte.

 

15. A intepretação que estamos a extrair do § 3.o do art. 791-A, da CLT, não é somente técnica, senão que histórica e sistemática.

 

Histórica, porque o objetivo que levou o legislador de 2017 a instituir o princípio da sucumbência, no processo do trabalho, está expresso na Justificativa do correspondente Projeto:

 

“A inclusão do art. 791-A na CLT tem por objeto disciplinar o pagamento dos honorários advocatícios na Justiça do Trabalho.

(...)

Pretende-se com as alterações sugeridas inibir a propositura de demandas baseadas em direitos ou fatos inexistentes. Da redução do abuso do direito de litigar advirá a garantia de maior celeridade nos casos em que efetivamente a intervenção do Judiciário se faz necessária, além da imediata redução de custos vinculados à Justiça do Trabalho”. Destacamos.

 

16.  Salta aos olhos, portanto, que o escopo do legislador foi o de “inibir a propositura de demandas baseadas em direitos ou fatos inexistentes”. Ora, sob essa perspectiva, se a sentença não acolhe, por inteiro, determinado pedido formulado pelo autor, isso não significa que a ação se tenha fundado em direito ou fato inexistente: um e outro existiam,  pois foram jurisdicionalmente reconhecidos, embora em dimensão inferior à pretendida na petição inicial (pedido acolhido apenas em parte). Só se pode cogitar de direito ou fato inexistente se a sentença rejeitar, por inteiro, o pedido.

 

17. A propósito, é momento de efetuarmos uma correção nas expressões “julgar procedente o pedido”, “julgar improcedente o pedido”, e similares, que caíram, há muitos lustros, no duvidoso gosto da doutrina, da jurisprudência e – como visto – do próprio legislador trabalhista de 2017. Proceder significa, lexicamente, vir de algum lugar; e o pedido procede da peça inicial. Logo, sob o rigor da lógica formal, todo pedido procede, pois vem de algum lugar. Adote-se, portanto, em atenção aos preceitos da acribologia, a terminologia mais científica, utilizada na redação do art. 490, do CPC: “O juiz resolverá o mérito acolhendo ou rejeitando, no todo ou em parte, os pedidos formulados (...)”. Destacamos. Pedidos são, consequentemente, acolhidos ou rejeitados; logo, se constarem da inicial, serão sempre “procedentes” – ainda que venham a ser rejeitados...

 

18. Retornemos à análise do § 3.o do art. 791-A, da CLT, para reiterar o nosso entendimento de que a expressão sucumbência recíproca, constante dessa norma legal, está a expressar que as partes ficaram totalmente vencidas em relação a distintos pedidos formulados na causa.

 

Nossa convicção quanto a isso se funda não apenas na interpretação histórica, já exposta, mas na sistemática, materializada no art. 789, § 1.o, da CLT, segundo o qual a custas serão pagas somente pelo vencido. Vencido na causa, por certo, e não, quanto a cada pedido.  De tal arte, se o autor formulou pedido de R$ 50.000,00, mas a sentença lhe concedeu apenas R$ 20.000,00, somente o réu pagará custas, a serem calculadas sobre os R$ 20.000,00 a que foi condenado. O autor nada pagará a esse título, pois o sistema do processo do trabalho não possui custas pro rata. Esse é o mesmo raciocínio a ser utilizado na interpretação do art. 791-A, § 3.o, da CLT.

 

19. Em suma, a interpretação que estamos a extrair do § 3.o do mencionado dispositivo de lei não só é fiel à sua literalidade e à própria mens legislatoris, como procura fazer com que o autor possa exercer, sem maiores sobressaltos no espírito, o seu inalienável direito constitucional de ação (CF, art. 5.o, inciso XXXV), significa dizer, direito de invocar a tutela jurisdicional do Estado, com a finalidade de promover a defesa de um direito ligado a bens ou a utilidades da vida, ameaçado de lesão, ou já lesado.

 

20. Ainda que a interpretação que estamos a preconizar não fosse a única acertada, senão que uma de duas interpretações possíveis, atuaria em favor dela, em caráter adminicular, o vetusto princípio in dubio pro misero, contrafeito do in dubio pro reo, do direito penal. Conquanto o in dubio pro misero não incida em tema de apreciação de provas -- como na denominada prova dividida,  pois, neste caso, o juiz tem de verificar qual foi a prova de melhor qualidade e decidir em consonância com ela --  é aplicável, à larga, em matéria de interpretação de norma legal, seja de natureza material, seja de natureza processual. O aludido princípio possui base lógica, pois se a legislação trabalhista – lato sensu – se destina, em tese, a proteger o trabalhador, a tutelar os seus interesses, nada mais coerente do que, diante de duas interpretações possíveis de determinada norma legal, se opte por aquela que se harmonize com o caráter protetivo que essa legislação revela.

 

21. É razoável presumir que alguém possa vir a interpelar-me para, entre outras coisas, esclarecer a razão pela qual não defendo a revogação, pura e simples, do art. 791-A, da CLT, com vistas a anatematizar do processo do trabalho essa verdadeira Caixa de Pandora introduzida pelo legislador de 2017. Sendo assim, devo responder, em caráter proléptico, que no atual momento político que o País estar a viver não há clima para essa proposta de revogação, pois o Congresso Nacional está ou estará às voltas com as reformas da Previdência, Tributária, Administrativa e outras mais.

 

22. Em todo o caso, se essa revogação viesse a ocorrer, o sistema do processo do trabalho não ficaria destituído de instrumento necessário à preservação do conteúdo ético que lhe é inerente, uma vez que o art. 793-C, da CLT – também introduzido pela Lei n. 13.467/2017 --, prevê os casos de litigância de má-fé, ensejando a condenação do improbus litigator ao pagamento não somente de multa (superior a 1% e inferior a 10%) e de indenização, como de honorários de advogado à parte contrária.

 

23. Os males que o art. 791-A, da CLT, vem acarretando, principalmente, à classe trabalhadora brasileira, podem ser abrandados pela interpretação que estamos a alvitrar do § 3.o da citada norma legal. Sem o predomínio dessa interpretação, os trabalhadores continuarão a ter receio de demandar na Justiça do Trabalho -- essa Justiça que, desde as suas origens, constitui modalidade de serviço público colocado à disposição deles.

 

24. Sob esse aspecto, vem-me à lembrança a lenda de um Imperador despótico, em cujo reino não havia um Poder Judiciário. No decorrer dos anos, entretanto, os ministros que lhe eram mais íntimos passaram a aconselhá-lo a instituir esse Poder, pois os países democráticos, com os quais o reino do déspota mantinha importantes relações comerciais, estavam inquietos diante do fato de ser o próprio Imperador quem realizava o julgamento dos conflitos de interesses ocorrentes entre os seus súditos.  Tantas foram as insistências, tantos foram os argumentos dos ministros, que o déspota decidiu criar um Poder Judiciário.  Convocou, então, um grupo de assessores, dizendo-lhes que elaborassem o correspondente projeto, mas impôs-lhes uma condição sine qua non: que fossem criadas pesadas taxas para quem desejasse ingressar em juízo, para quem pretendesse produzir provas, para quem quisesse recorrer da sentença, e assim por diante.

 

O Imperador concluiu a sua determinação, dizendo:

 

-- Imponham, enfim, tantas pesadas taxas e tantas pesadas despesas, de tal forma que o povo tenha, verdadeiramente, receio de ingressar nesse Poder Judiciário!

 

Uma ironia: o que era, simplesmente, uma lenda, parece haver-se tornado cruenta realidade no processo do trabalho de nosso País, mercê da interpretação que determinados segmentos da doutrina e da jurisprudência vêm dando ao § 3.o do art. 791-A, da CLT -- e da qual ousamos discordar.

 

25.  Vem-me também à lembrança, neste momento, a obra de Gil Vicente: O Auto da Barca do Inferno, escrita por volta de 1517. Trata-se de uma crítica aos costumes da sociedade lisboeta do período. Na obra, Gil – considerado o fundador da dramaturgia em Língua Portuguesa --- nos fala de duas barcas estacionadas em margens opostas do mesmo rio: uma, capitaneada por um Anjo, conduziria as pessoas falecidas ao Paraíso; outra, comandada pelo Diabo, as conduziria – por óbvio -- ao Inferno. Todas as pessoas finadas pretendiam subir para a barca angelical. O Anjo, todavia, previamente as interrogava a respeito da vida terrena que tiveram, e o resultado é que, praticamente, todas eram mandadas à indesejável Barca do Inferno. Assim ocorreu com um fidalgo, um agiota, um parvo, um sapateiro, um frade, uma alcoviteira, um corregedor, um procurador, entre outros. Conseguiram ingressar na Barca do Anjo apenas quatro cavaleiros da Ordem de Cristo, que haviam combatido nas Cruzada, um parvo e um padre.

 

Pergunto ao estimado leitor: se Gil Vicente ainda fosse vivo, para qual Barca ele remeteria os autores da Reforma Trabalhista?

 

26. O florentino Dante Alighieri escreveu a celebérrima A Divina Comédia. Na verdade, a obra possuía o título somente de A Comédia. Quem lhe acrescentou o substantivo Divina foi Boccaccio. Pois seja. Dante, em companhia de seu amigo, o poeta Virgílio, visita os nove círculos do Inferno, mas o que o impressiona é a inscrição constante à porta desse local apavorante: Lasciate ogni speranza voi que entrate (Abandonai qualquer esperança, vós que entrais).

 

Confesso que me toma de preocupação o espírito a possibilidade de, no futuro, a permanecer o atual estado de coisas -- agravado pela exigência de que os pedidos formulados na inicial indiquem também o correspondente valor --, o trabalhador brasileiro vir a ser tragicamente surpreendido ao perceber essa inscrição infernal reproduzida no frontispício dos órgãos da Justiça do Trabalho de nosso País...

 

Lasciate ogni speranza...

27. Ainda há tempo para evitar esse vilipêndio ao trabalhador de nosso País: basta revogar o malfadado art. 791-A, da CLT.

 

III – O Projeto de Lei n.o 409/21    

28. A propósito, o Deputado Carlos Bezerra elaborou, recentemente, o Projeto de Lei n.o 409/21, destinado a “suprimir a previsão de honorários de sucumbência no processo do trabalho”, mediante a revogação do art. 791-A, da CLT.

Lê-se, em certo trecho da Justificação do Projeto:

“Dessa forma, o trabalhador corre sério risco de sair devedor quando ajuíza uma reclamação trabalhista, pois, mesmo que consiga provar parte dos fatos, pode ser condenado a pagar honorários de sucumbência sobre aquilo que não comprovou. Impôs-se ao trabalhador um verdadeiro temor quanto ao ajuizamento de uma ação.

Entendemos, assim, que os honorários de sucumbência não podem prevalecer no processo do trabalho, pois significam um entrave para o acesso dos trabalhadores ao Poder Judiciário”.

Espero que o Projeto se converta em Lei.

Quem viver, haverá de ver.

 

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2021