INTENSIFICAÇÃO DO TRABALHO E  ACUMULAÇÃO DE FUNÇÕES

 

 

 

CLÁUDIO ARMANDO COUCE DE MENEZES

Desembargador do Trabalho 17ª Região. Mestre e Doutorando pela PUC-SP. Doutorando e Investigador Internacional pela UCLM/Espanha.

 

 

 

SUMÁRIO: Apresentação; 1. As dimensões do trabalho; 1.1 “O feijão e o sonho”; 1.2 A alienação no trabalho; 1.3 Trabalho e ideologia; 1.4 Estratégias empresariais de exploração do trabalho; 1.5 A intensificação do trabalho mediante acúmulo de funções; Conclusão; Bibliografia.

 

 

 

APRESENTAÇÃO

 

Da visão negativa do trabalho, que vem dos primórdios da humanidade (mitos da “Era do Ouro” ou da Bíblia, “Jardim do Éden, Gênese, 3; 16.19), passando pelo desprezo grego na antiguidade e pela sua própria etimologia latina “tripalium”/”trepalium” (instrumento de tortura nos tempos dos romanos) até a modernidade, que estabelece o trabalho como uma fonte de valores, conferindo uma dignidade tal a ponto de constituir um dos pilares dos países civilizados, ao menos no plano retórico, há uma longa história repleta de som e fúria, além de muito sangue, suor e lágrimas...

 

Com efeito, o termo grego para o artesão (trabalhador manual) era “banausos”, que remete a um registro pejorativo de incultura, rusticidade. Por sinal, o desdém ao trabalho e a quem o exercia não era estranho aos filósofos da antiguidade helênica. Nos tempos romanos, tinha a conotação de dor, humilhação, dependência, sofrimento; todos os castigos em um só: “trepalium” – instrumento de madeira constituído pela junção de três paus – que era utilizado para a tortura em escravos e também em rebeldes ou em quem não queria pagar impostos.

 

No século XI, o trabalho igualmente significava sofrimento. Ainda no século XIII, veicula a ideia de tortura, pena, penitência. O verdugo era denominado “trabalhador”. Por boa parte da idade Média, prevaleceu essa visão, agravada pela interpretação teológica que o incluía no rol das punições infligidas por Deus após a falta de Adão. Mas, em meados do século XV, trabalho é associado a viajar (trabalha-se de reino em reino, viaja-se de reino em reino) e, a partir daí vai alterando paulatinamente sua compreensão, sendo que sua noção atual começa a ganhar forma a partir do século XVIII, ainda que vinculada a esforço, sofrimento, tarefas penosas – aliás, bem condizente com as condições laborais de então[1], que permaneceram (ou foram agravadas) no século seguinte. Começam a melhorar após muita luta e resistência dos trabalhadores, originárias de protestos, greves, organizações associativas e sindicais, rebeliões, atos de sabotagem, revoluções e reivindicações políticas, em geral, duramente reprimidas por patrões e pelo Estado, através de seu aparato repressivo (polícia, exército, forças paramilitares, estrutura administrativa e judiciária). Certo é que o trabalho em várias línguas e dialetos contém em si a ideia de fadiga, pena, atividade desgastante, sofrimento (ARABEIT, pena no alto alemão; AZON em Bénin, gemido, lamento; no sul da Itália, “vado a fatigare”...)[2].

 

No período posterior à idade média até o momento contemporâneo, o trabalho é visto, conforme o pensador e sua corrente teórica, como origem da propriedade, como fundamento de valor, como atividade providencial, como mediação necessária da consciência de si e do reconhecimento social, como essência da humanidade, como fonte de dignidade do ser humano, como meio de emancipação, como agir instrumental sobre a natureza externa, como dever-profissão-vocação-função, como alienação e “estranhamento” do homem, como forma de liberar o homem da tirania da natureza, como processo cíclico informado pelo reino da necessidade.

 

 

1. AS DIMENSÕES DO TRABALHO

 

1.1 “O feijão e o sonho”

 

O homem necessita do trabalho para produzir sua condição de existência. Desde os seus primórdios, demandava a força de seu corpo e de sua mente para dominar a natureza e, depois, outros homens a fim de que, com seu trabalho e/ou de outrem, pudesse sobreviver, viver e enriquecer. HESÍODO, “Nos Trabalhos e nos Dias”, já advertia que “os deuses e os mortais indignam-se com aquele que vive sem se por a trabalhar, esquivando-se ao labor, apenas desperdiçando e devorando o fruto das tarefas das abelhas” (essas ‘abelhas’ que também poderiam ser consideradas as formigas da fábula, facilmente são identificadas como os lavradores, os trabalhadores da terra, aqueles quem sem sua labuta não sobreviveriam)[3].

 

No discurso da modernidade e do momento contemporâneo, presenciamos o trabalho assumir ares de aptidão e dignidade, uma vocação que, ao mesmo tempo ressalta as necessidades vitais de sobrevivência e de paixões próprias do ser humano. Trabalho, portanto, seria esforço e necessidade, paixão e libertação. No trabalho, a atividade humana apropriar-se-ia de sua essência. Nele, o homem assumiria sua condição de civilizado, descobrir-se-ia como “ser-no-mundo”, sujeito e não objeto, rompendo com sua alienação, seu isolamento e brutalidade. O trabalho garantiria a alteridade do ser humano que labora[4].

 

Belos pensamentos. Vem dos filósofos iluministas e modernos. Porém, se olharmos em volta, na internet, nos jornais escritos e falados, nas estatísticas, nas obras de sociologia do trabalho e mesmo em alguns estudos jurídicos, para não falar nos repertórios de jurisprudência, veremos algo bem diferente: degradação do trabalho e do trabalhador, superexploração da mão de obra, precarização das relações trabalhistas, alienação cada vez maior do labor, prestação de serviços em condições análogas a de escravo, etc., desmentindo o prognóstico iluminista e moderno, assim como todo discurso humanista erigido em torno desse fenômeno.[5]

 

O que se constata, contudo, é que, como alhures, na sociedade contemporânea do hiperconsumo, confere-se ao trabalho valor bem inferior ao das máquinas e mercadorias. O trabalhador é posto em plano subalterno ao do consumidor. Aquele que trabalha também é inserido na lógica do consumo: torna-se absolutamente descartável, consumível, bem destinado a não permanecer, desvalorizado e transformado em coisa ou em mera atividade.

 

Exemplo claro da desvalorização do trabalho frente ao consumo, encontramos na controvérsia referente à abertura do comércio aos domingos e feriados, notadamente nos shopping-centers, supermercados e lojas de departamentos. O desfavor em relação ao trabalho e ao trabalhador é patente. Argumenta-se que tal medida aumentaria o consumo (as vendas, o lucro...), criando para o consumidor mais um momento de lazer – e de “prazer”; enquanto circula, consome imagens, mercadorias e serviços, além de se tornar mais intenso o seu contato com o bombardeio da propaganda. Já o repouso (e lazer) do trabalhador do comércio e dos serviços ligados a essa atividade, seu convívio familiar e social são postos em segundo plano ou solenemente ignorados. Outros exemplos poderiam ser oferecidos, a limitação do direito fundamental de greve para não causar estorvos aos consumidores, jornadas dilatadas de trabalho com a finalidade de responder a piques de consumo ou da demanda, práticas estressantes de trabalho ou intensificação do labor a fim de “melhor atender o cliente”, etc.

 

Assim, trabalho e trabalhador tornam-se meros objetos, mercadorias da sociedade do consumo desenfreado. Os valores, as necessidades e a ideologia do mercado compõem o quadro da exploração, alienação e desvalorização do trabalho[6]. Algo, convenhamos, bem longe dos prognósticos da modernidade e dos sonhos, tornados pesadelo, dos iluministas e modernos.

 

Por outro lado, na sociedade consumerista atual, os homens passam a ser julgados, todos, segundo as funções que exercem no processo de trabalho e de produção social, quer dizer, segundo sua aptidão para consumir e SER CONSUMIDO inclusive como trabalhador (manual ou intelectual) de acordo com sua identificação com os “valores de mercado”, assumindo, frequentemente, as posturas ideológicas dos empresários, sócios e acionistas.[7] Não se pode olvidar nesse contexto, a conexão permanente dos trabalhadores aos seus empregadores via computadores, celulares e outros artefatos eletrônicos, todos a serviço da maior disponibilidade e “empenho” do assalariado. Não poucos são os profissionais que se orgulham desse estado de exploração constante de seu labor. Muitos, depois, vão bater às portas da Justiça do Trabalho...

 

Esse consumo/exploração de pessoas termina no próprio consumo/ exploração do consumidor pelo próprio consumidor como ocorre no ‘homebanking”, gentlebanking, caixas eletrônicos, aplicativos de acessos on line, realizando em favor do banco tarefas atinentes aos bancários. Na área de transportes aéreos, o “estímulo” (imposição) ao consumidor para utilizar totens nos aeroportos, internet e aplicativos de smartphones para compra de passagens (com preços bem menores do que no balcão ou teleatendimento), suprime postos de trabalho dos aeroviários, rendendo uma economia nada desprezível às empresas aéreas que contam com os préstimos de seus clientes.

 

Apesar de todas as críticas fundadas na realidade, certo é que nossas sociedades estão fortemente atadas ao trabalho e à ideia de que é um fator primordial na construção, identidade e valorização do ser humano. Daí ser imprescindível o seu estudo, nas suas ambiguidades e reais dimensões.

 

 

1.2 A alienação no trabalho

 

A alienação do trabalho consiste, inicialmente, no fato de o trabalho ser exterior ao obreiro; não pertence à sua essência, mortifica o corpo, arruína o espírito. A atividade (física ou intelectual) não é livre, pois é encargo, restrição, fardo, sacrifício. O trabalhador não tem o sentimento de ser ele mesmo no labor que exerce.

 

Já na antiguidade, as palavras depreciativas de PLATÃO e ARISTÓTELES, denunciavam a alienação e o embrutecimento do ser humano com e no trabalho. O primeiro mencionava o ritmo repetitivo que usa e mutila a alma ao mesmo tempo que deforma o corpo (A República, 495d-p); o estagirita por sua vez, de modo cruel dizia que o trabalho que exigia mais habilidade era aquele mais afortunado, com menos riscos e desgaste; o mecânico é o que mais deforma o corpo; os mais servis, os que exigem mais das forças humanas[8]. Já MARX escreveu que o “reino da liberdade” só começa a partir do momento onde cessa o trabalho ditado pela necessidade e por fins exteriores. Como pontua HANNAH ARENDT, “em MARX encontramos a noção aparentemente blasfema de que o trabalho (e não Deus) criou o homem”. Segue a filósofa: “Esta apologia desagua na crença de que o trabalho (e não a razão) distingue o homem dos outros animais”, estabelecendo uma das ideias marxistas mais persistentes, “a da criação do homem pelo trabalho”. (Possíveis) ironias à parte, essa preocupação será decisiva na denúncia da alienação no trabalho e na busca de sua superação[9].

 

Para além do reino da necessidade, o trabalhador geralmente loca, vende ou põe sua força de trabalho em prol de alguém. O resultado do trabalho não lhe pertence, sua atividade é apropriada. O fruto de seu labor fica com outrem. “A atividade do trabalhador não é sua autoatividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo” (MARX[10]). No labor alienado, não me reconheço no que faço, pois minha produção é apropriada por outrem, que normalmente estabelece os ditames do meu modo de trabalhar. Torna-se o obreiro uma coisa, mercadoria, mero componente do “mercado de trabalho” (outra expressão cabalística de economistas, administradores, executivos de recursos humanos e da mídia em geral, como o “mercado” e as “forças do mercado”). Ademais, submete-se ao comando, ingerência, vigilância, controle, disciplina e julgamento de quem o contrata. Perde, é despojado de si mesmo, ao menos durante a jornada de trabalho.

 

O trabalho é alienado porque não se constitui em atividade livre no âmbito físico e intelectual. Os métodos, ritmos e organização retiram daquele que labora a possibilidade objetiva de exercer na plenitude a sua subjetividade. Aliás, não são muitos os que conseguem alguma realização da sua subjetividade no trabalho. Em geral, o trabalho é visto como uma negação de si, uma imposição ou necessidade vital, ao menos o trabalho assalariado, subordinado, economicamente dependente, cujos frutos são apropriados por outrem.

 

O tempo de trabalho é o tempo de apropriação das forças físicas e do potencial intelectual de quem presta seu labor. Difícil, deste modo, pensar em afirmação do ser, na liberação de suas energias vitais na construção de sua identidade plena e de uma satisfação com sua condição. Essa incompletude  é ainda pior, muito pior, quando agravada pela degradação que o trabalho sofre atualmente, retomando características que, esperava-se, estivessem superadas pela história, sem falar de outras advindas com as novas formas de sua organização.

 

A regra é, portanto, a do trabalho alienado em se tratando do empregado e de todos os inseridos em um modo de prestação de serviços tomado e usufruído. Aqueles que devem ganhar a vida desta forma estão obrigados pelas circunstâncias a dispor de sua labuta em favor de alguém, que o paga por obra, serviços, produção, comissões, etc., pagamento que não representa o total do valor de seu labor. Neste aspecto, reside o ponto de partida da exploração do trabalho. A “mais valia” ou “plus valia”.

 

A alienação tende a aumentar com a informatização da produção e dos serviços. A heterogeneidade do trabalho concreto é reduzida, e o trabalhador fica cada vez mais afastado do objeto de seu trabalho[11]. A “deslocalização” ou “desterritorialização” do labor e a produção em rede são também fatores que agravam o distanciamento do obreiro com o fruto de sua labuta.

 

 

1.3 Trabalho e ideologia

 

A contaminação do trabalho pela ideologia nascida e alimentada pelo capital é algo deveras conhecido[12], contribuindo para a própria exploração do assalariado[13]. Em linhas passadas, já adiantamos algo sobre o tema. Cabe aqui retomar o tema e tentar aprofundar a análise.

 

O trabalhador incorpora a ideologia do capital de diversas maneiras (escola, mídia, família, etc.). A empresa também é fonte direta de ideologia. Como prescreve o novo “management”, o profissional deve assumir os “valores da empresa” (“é a alma do operário que deve descer à oficina”); é o profissional que deve pensar e agir como se fosse o empregador, motivado e dedicado, incorporando à mentalidade empresarial. A personalidade e a subjetividade obreiras passam a ser comandadas, organizadas, manipuladas em favor do capital em um sistema de máximo rendimento.

 

Não só o seu trabalho, mas o que seria seu espaço e tempo autônomos, fora do ambiente do serviço (vida íntima, particular e familiar, o período de desconexão e convivência social, comunicações privadas), passam também a ser controlados, manipulados e organizados pelo capital[14]. O trabalhador deve empregar seu tempo de lazer (ou parte dele) para se aperfeiçoar, atualizar-se, assumir novas competências, pensar em soluções ou melhoras para a empresa. Igualmente, não deve descuidar de seu comportamento externo, tampouco pode dar livremente vazão aos seus posicionamentos e opiniões nas redes sociais etc. Tem-se aí uma apropriação objetiva e subjetiva, uma transfiguração de valores, discursos e práticas, para não dizer uma perversão total. Transforma-se o trabalho e quem o presta em mercadoria (ou, melhor, põe-se a nu uma condição já posta pelo capitalismo desde os seus primórdios, negada, porém, pela maioria dos juristas).

 

O trabalho é valorizado pelo capital enquanto COMPORTAMENTO (externo e interno; submissão ao empregador, conduta fora do serviço de acordo com as expectativas patronais), PERSONALIDADE (a assunção da condição de alter ego do empregador) e MOTIVAÇÃO (colaboração, entrega total à empresa, empreendedorismo)[15].

 

Portanto, além do tempo dedicado às tarefas normais, decorrentes do contrato, a conduta, a postura, a maleabilidade e a disposição de se deixar explorar desmedidamente (e de explorar outrem em prol do empregador), compõem o chamado “capital humano”, apropriado pelas empresas dentro da ideologia da máxima rentabilidade[16].

 

Cria-se uma cultura absolutamente distorcida, em que o trabalhador assume um papel de “empresário de si mesmo”, concorrendo com outros empregados ou “colaboradores”, e com o de outras empresas, como se fosse uma empresa de verdade e não um mero simulacro. Internalizam o escopo  do máximo rendimento e proveito, não raro, às custas de seu convívio familiar e social, lazer e saúde. Também nessa esfera, são frequentes os desvios de conduta, descambando para a ilegalidade, apesar do cínico discurso empresarial do COMPLIANCE, já que as metas de produção, vendas e crescimento, os bônus, participações nos lucros e resultados estão à espera, para não mencionar os riscos de uma dispensa...[17]

 

Nessa farsa grotesca, este “auto-empresário” de sua força de trabalho, frequentemente providencia sua própria formação e aperfeiçoamento profissional, mesmo estando contratado, seus equipamentos e meios necessários ou úteis para o seu labor (automóvel, computador, escritório, ferramentas, celular, etc). Além disso, deve ser absolutamente adaptável aos objetivos do tomador de seus serviços, adotando uma postura de disponibilidade permanente para o trabalho que presta e para quem o contrata, em condições cada vez mais instáveis e inseguras.[18] Trata-se de um processo de “auto-exploração” (a super- exploração de “moi-mêmê”). No “exército de um homem só”, não bastasse já a exploração e a alienação do seu trabalho, o trabalhador torna-se o algoz de si mesmo.[19]

 

Daí para a aceitação do discurso do capital de que o trabalhador não precisa mais da “legislação protecionista”, sindicatos e de um contrato de trabalho formal é só um passo. Depois, vem a assunção da defesa da negociação por empresa (inclusive, se for o caso, sem a participação da entidade sindical), do acordo individual sobre o coletivo e do “negociado  sobre o legislado”, isso para não falar da execução de práticas perversas e ilícitas como o do assédio individual ou organizacional, o cinismo profissional destinado a seduzir consumidores, o descumprimento de normas legais e internas para alcançar os patamares de rentabilidade estabelecidos pelo empregado.

 

O “auto-emprendimento” ou a “empresa do eu sozinho” frequentemente apresenta-se travestido de microempresa ou de uma pequena empresa formalizada por uma sociedade de responsabilidade limitada, com a participação fictícia de parentes ou de outros prestadores de serviços obrigados a usar a roupagem de pessoas jurídica (PEJOTIZAÇÃO), em um expediente bastante eficaz à concepção do trabalho como mero objeto de consumo e de cálculos econômicos, inteiramente sujeito aos interesses do “mercado”. Para não mencionar a destruição da coesão, solidariedade e organização obreiras; dissolução de paradigmas; desconstrução de direitos laborais e deveres patronais e a burla de normas constitucionais, de direito internacional e legais.

 

 

1.4 Estratégias empresariais de exploração do trabalho

 

Por muito tempo, prevaleceu o postulado do trabalho como um liame social do qual adviria a necessidade/dever de uma ocupação ou emprego. O cidadão laboraria, sob pena de punição ou exclusão social. O “crime de vadiagem” no Brasil era um exemplo claro dessa concepção. Relevante era o trabalho, pouco importando o tipo e a qualidade, desde que empregado estivesse o trabalhador. O salário e emprego consistiam no mote da sociedade do labor contínuo, permanente, integrado na empresa.[20]

 

A mensagem ideológica mudou. O que importa, segundo o discurso atual do capital e de seus arautos, é que haja disponibilidade PARA o trabalho, seja ele provisório, precário ou mal remunerado. O emprego, quando não o próprio trabalho, no discurso em vigor, assume a qualidade de algo especial, quase um privilégio[21]. Só aqueles que aceitarem trabalhos “autônomos”, a regime parcial ou por tempo determinado, contratos de prestação de serviços via pessoa jurídica ou em sistema de terceirização em geral serão lembrados... Além de uns poucos eleitos que, pela qualificação, função ou qualquer     outra circunstância, terão o privilégio de um emprego regular, formal e por tempo indeterminado (excluída, contudo, cada vez mais, a possibilidade da estabilidade)[22]. Enquanto isso, centenas, milhares, milhões restam excluídos para que as empresas, segundo a retórica dominante, possam se tornar enxutas e competitivas[23].

 

Nessa esteira, não podemos deixar de lembrar o entusiástico apoio ao estratagema de estabelecer o seguro-desemprego e outras parcelas assistenciais em patamares tão baixos que os desempregados sejam obrigados a aceitar qualquer trabalho (sub-remunerado, precário, perigoso, penoso, insalubre, distante de sua família, exigindo grande tempo de deslocamento, absolutamente desqualificado ou em dissonância com a formação profissional do trabalhador). Prática que cria uma cultura de incitação; o obreiro deve aceitar qualquer serviço e qualquer pagamento, algo extremamente útil para futuras contratações, especialmente em serviços precarizados como os terceirizados, temporários  e em regime parcial. É o WORKFARE no lugar do WELFARE, disciplinando  o trabalhador, quebrando suas resistências, desvalorizando o trabalho e destruindo sua dignidade.[24]

 

Nessa ideia de chantagem, manipulação e prepotência, avulta a dispersão produtiva, deslocalização ou desterritorialização das atividades empresariais, deixando o trabalhador em desconfortável posição para negociar, resistir e pressionar o capital. Na organização tradicional da produção industrial, o capital estava adstrito a um território específico e, portanto, lidava com uma população operária determinada, uma coletividade que, laborando e residindo próximas, inclinava-se à reunião, à sindicalização e à reivindicação coletiva.  A liberação do capital aos territórios e a uma dada coletividade organizada e solidária permitiu a sua transferência de um lugar para outro na rede global, buscando sítios em que as condições para sua reprodução sejam para si mais favoráveis. Coletivos de trabalhadores, que tinham certo poder nos movimentos reivindicatórios, viram-se enfraquecidos, reféns dos empregadores, quando não assolados pelo desemprego e pelo subemprego. Uma vez enfraquecida a posição de força dos obreiros, o trabalho torna-se mais precário, rarefeito e as condições contratuais menos favoráveis, além de facilitar a imposição de um domínio abusivo sobre o trabalhador.[25]

 

Outro eixo relevante da nova estratégia do capital reside na FLEXIBILIDADE[26], que possibilita a transferência do fardo do mercado para os trabalhadores. Fala-se em flexibilidade interna, fundada na transformação profunda da organização do trabalho e das técnicas utilizadas (polivalência, autocontrole) e a flexibilidade externa, que supõe uma organização em rede, na qual “empresas enxutas” encontram os recursos que carecem na abundante subcontratação e na mão de obra maleável (trabalhadores sob contratos por prazo determinado ou em regime de tempo parcial ou com horários e jornadas flexíveis).

 

Conforme faz notar G. LYON-CAEN, a proliferação de trabalhadores precários resulta de novos estratagemas empresariais, que se articulam em dois pontos: uma nova política de contratação que possibilite ao empregador ficar de “mãos desatadas” e uma nova “política de estrutura empresarial”, que oculte a condição de empregador, por exemplo: a subcontratação[27]. Por sinal, no plano da subcontratação, assiste-se ao manejo desse expediente em vários níveis: as grandes empresas lançam mão de subcontratados de primeiro nível, que subcontratam empresas de segundo nível, e assim por diante. Quanto mais complexo o produto final, mais longa é a cadeia. A subcontratação, assim, dá origem a redes muito ramificadas, que muitas vezes envolvem centenas de empresas.[28]

 

Outro dispositivo de grande significado na busca de redução da proteção trabalhista é o da terceirização, que conduz ao enfraquecimento das entidades coletivas dos obreiros, diminuição de custos empresariais, isenção da responsabilidade civil e na precarização das relações laborais. Como advertem LUC BOLTANSKI e ÈVE CHIAPELLO, a terceirização isola, discrimina, pulveriza os trabalhadores, subtraindo os recursos de que dispunham para demandas unificadas e movimentos coletivos como a greve. De outro lado, o pessoal das subcontratadas, que bem poderia (ou deveria) ser empregado da empresa que subcontrata, se vê excluído de diversos direitos e vantagens concedidos aos assalariados da empresa que terceiriza. Assinalam ainda que a empresa dita principal procura, por este ardil, eximir-se da responsabilidade por acidentes de trabalho (mais numerosos nas prestadoras de serviço do que na empresa mãe, principal ou no setor nuclear, o núcleo duro do sistema de terceirização ou subcontratação)[29].

 

A terceirização é a principal forma de flexibilização e precarização do trabalho, correspondendo a um processo multidimensional de institucionalização da instabilidade na esfera laboral[30]. Expandiu-se para todas as áreas (bancos, call centers, indústria petrolífera, empresas automobilísticas, construção civil) e apresenta-se com diversas facetas (trabalho em rede, cooperativas de trabalho ou de mão de obra, utilização de microempresas, PJ´s, etc). Para além de sua dimensão quantitativa, que já evidencia o avanço da precarização para os trabalhadores na forma de salários mais baixos, de redução de direitos e mesmo de negação da condição de empregado (cooperativas e pejotização por microempresas de fachada), tem também uma dimensão qualitativa, especialmente no lugar central que ocupa como estratégia de dominação das empresas, pois cria uma divisão entre os trabalhadores (primeira e segunda categorias) e acirra diferenças. Em muitos casos, ela incentiva a discriminação, porque aqueles que fazem parte do quadro principal da empresa sentem-se superiores àqueles que devem se submeter a tudo ou a quaisquer condições de trabalho, “os outros”, as “empreiteiras”, os “subcontratados”. De resto, cria uma fragmentação, uma imensa pulverização da organização coletiva e sindical, já que a empresa contratante pactua com diferentes empresas, de diferentes setores e atividades, o que leva os trabalhadores a serem representados ou filiados a distintas entidades sindicais.

 

Prática extremamente eficaz na estratégia empresarial do ‘menos emprego’ e do ‘qualquer trabalho’, além da superexploração de quem permanece laborando na empresa ou já é contratado sob este modelo, encontramos no incremento da densidade do trabalho, também conhecido como intensificação do trabalho ou regime do “mais trabalho”. Exige-se maior rapidez, concentração, dispêndio de energia, jornada de trabalho, ritmo, polivalência, disponibilidade e carga de labor apesar do mesmo salário (assalariados que permanecem na empresa após cortes e “enxugamentos”), quando não inferior (muito comum em se tratando de novos empregados). Em casos excepcionais, concede-se um pequeno abono, gratificação ou prêmio a título de “produtividade” ou coisa afim...

 

A forma mais simples de intensificar o trabalho consiste na redução ao máximo dos intervalos, tempo de espera, pausas, “folgas” na jornada e descansos; é a “caça aos tempos mortos”, que são tempos sociais, indispensáveis à reposição das forças, à socialização e ao bem-estar psíquico (sobretudo, em ambiente ou labor estressante). O segundo meio de intensificação, que não exclui o primeiro, reside no aumento do ritmo de trabalho (produção, vendas, atendimento)[31]. Outra forma de exploração desmedida da força de trabalho, pelo modo aqui exposto, reside na acumulação de funções sem o correspondente pagamento (ou em valor ínfimo). A dilação da jornada de trabalho igualmente compõe esse sistema do “mais labor” (longas jornadas, trabalho extra, conexão contínua à empresa são exemplos já “clássicos” do MAIS TRABALHO).

 

A pressão de prazos e de padrões de qualidade (certificação ISO, p. exemplo) constituem igualmente padrões coercitivos que geram (ou contribuem para) o fenômeno da intensificação do trabalho, guardando relação direta com os casos acima mencionados. A informatização também pode gerar novas exigências de intensificação qualitativa (atenção, vigilância e concentração) e quantitativa (disponibilidade, aumento de tarefas e responsabilidades); o controle via câmeras, sistemas de informática e vigilância, além da intromissão nos computadores dos empregados, outrossim, facilita o MAIS TRABALHO pela coerção.

 

O estabelecimento de metas de vendas, produção, resultado ou lucros, associado ou não a ameaças de despedida, configura importante instrumento de efetivação do regime de intensificação do trabalho.

 

Engenhosa, para não dizer ardilosa, é a tendência de recrutar pessoas superqualificadas com salários de empregados menos qualificados, “ignorando” a contribuição real dessa qualificação especial. Assim, profissionais altamente capacitados recebem remuneração inferior e assumem cargos, mas não funções, mais modestas do que os atinentes à sua expertise e aos resultados, ganhos e benefícios que gera para o empregador.[32]

 

Além da tradicional jornada excessiva de trabalho pela prestação de número dilatado de horas extras, apresenta-se o PLUS LABOR como sobrecarga ou acumulação de funções e atividades, muito comum na área bancária, supermercados e na área de vendas, especialmente após o “enxugamento” das empresas (os empregados que ficam ou são contratados passam a realizar tarefas e misteres dos dispensados). Mas, novas técnicas de trabalho, frutos da chamada “reengenharia empresarial”, podem gerar esse quadro de densidade laboral (ex. acumulação de funções de motorista e cobrador de ônibus). E é desta modalidade de superexploração do trabalho específica que trataremos a seguir.

 

 

1.5 A intensificação do trabalho mediante acúmulo de funções

 

Como mencionamos acima, a cumulação de funções é prática extremamente eficaz na criação da cultura empresarial do “menos emprego”, além da superexploração de quem permanece laborando na empresa, ou docilmente aceita ser contratado sob este regime. Consiste na INTENSIFICAÇÃO DO TRABALHO por um salário equivalente ao anteriormente praticado ao arrepio da bilateralidade e comutatividade do contrato de trabalho, sem falar da alteração lesiva e ilegal do contrato (art. 468 da CLT), quebra do princípio da boa fé, entre outros fundamentos (princípio da valorização social do trabalho, da dignidade da pessoa humana, do meio ambiente do trabalho sadio e equilibrado, da isonomia, etc.).

 

É o fenômeno do MAIS TRABALHO, onde ocorre a sobrecarga ou acúmulo de funções, de tarefas ou atividades mediante a densidade do labor, rapidez dos serviços e maior dispêndio de energia física e mental.

 

Tal regime de trabalho pela captação da “mais valia da mais valia” gera riscos para a saúde dos obreiros relacionados ao cansaço, à ansiedade, ao esgotamento e ao estresse laboral.

 

Na Europa, o impacto daninho da intensificação do trabalho sobre a saúde aparece nos levantamentos feitos a cada cinco anos pela Comissão Europeia para a melhoria das Condições de Trabalho e de Vida nos países membros[33]. Na França, para ser mais específico, os efeitos sobre a saúde da classe obreira no âmbito físico e mental, em decorrência do regime do MAIS TRABALHO é retratada em várias pesquisas e estudos de sociólogos  e médicos do trabalho. Idem na Espanha.[34] No Brasil, há advertência clara     de que a intensificação do trabalho neste contexto ideológico e prático de superexploração acarreta riscos e comprometimento à saúde dos obreiros (SADI DAL ROSSO no plano da sociologia do trabalho e SEBASTIÃO GERALDO DE OLIVEIRA na esfera do Direito do Trabalho).

 

No campo jurídico, cabe o registro da melhor doutrina acerca da intensificação do trabalho pela acumulação de funções. O jurista Edilton Meireles[35] explica:

 

“Questão recente no direito laboral português, e que tem íntima ligação com o jus variandi, refere-se à denominada polivalência funcional, ou seja, a possibilidade do empregador encarregar o trabalhador com serviços não compreendidos na atividade contratada (item 1 do art. 314 do Código do Trabalho).

A modificação unilateral do contrato por imposição do empregador, conforme lei brasileira, é ilícita, assim como aquela que decorra de acordo contratual, mas seja prejudicial ao empregado (art. 468 da CLT). Trata-se portanto, de ilicitude propriamente dita e não de abuso de direito. (...)

Já em relação à alteração nos serviços a serem executados pelo empregado, poder-se-á aferir, objetivamente, a abusividade da modificação introduzida unilateralmente pelo empregador, no uso do seu jus variandi.

Cabe destacar, porém, que o princípio da comutatividade há de ser preservado, ou seja, deve ser mantido o equilíbrio contratual de modo a não se incorrer em violação à função econômica do contrato ou princípio da boa-fé objetiva.”

 

O juslaboralista Renato Sabino Carvalho Filho, em alentado estudo, tece relevantes considerações acerca do tema[36] destacando que “a onerosidade é o sinalagma que forma a equação econômica do contrato de trabalho, pois o empregado aceita o emprego a partir do momento em que analisa se o valor oferecido como salário efetivamente corresponde às suas expectativas de retribuição da força de trabalho a ser dispensada”.

 

O autor destaca as ponderações de Rodrigo Garcia Schwarz[37], ao comentar sobre o “acúmulo de funções”, no sentido de que a ““equação econômica” do contrato consubstancia, para o trabalhador, um direito subjetivo, a expressão de equivalência entre as vantagens e os custos da sua atividade pessoal, que deve ser respeitada como elemento determinante do contrato de trabalho, intrínseco à sua liberdade para contratar.”

 

Portanto, o acúmulo rompe exatamente com o equilíbrio da relação, ou seja, da denominada por este autor “equação econômica”.

 

Assim, para Carvalho Filho, a delimitação das funções assinaladas ao empregado faz parte da base objetiva do contrato de trabalho, seguindo a linha do doutrinador alemão Karl Larenz que analisou as bases do negócio jurídico sob os aspectos subjetivo e objetivo, sustentando a regulação separada de ambos[38].

 

Conclui, assim, com a citação de Karl Larenz no sentido que “a base objetiva se caracteriza por circunstâncias que vão além do conteúdo do contrato e influenciam diretamente na formação do vínculo obrigacional. Trata-se de circunstâncias e estado geral de coisas cuja existência ou inexistência é objetivamente necessária para a manutenção do contrato, segundo a intenção de ambos. Como resultado, as circunstâncias que influíram na vontade das partes devem ser consideradas na interpretação dos contratos. Vale ponderar que tais circunstâncias devem ser econômicas, culturais e sociais, e não pessoais”.[39] Dessa forma, rompido o equilíbrio do contrato, pela alteração das circunstâncias da base objetiva, o equilíbrio entre as prestações deve ser restabelecido, evitando o enriquecimento sem causa do tomador de serviços e a superexploração do trabalhador.

 

O pedido tem fundamento jurídico na legislação pátria: art. 468, da CLT, que veda alterações lesivas no contrato de trabalho.

 

Certo é que há previsão no art. 456 da CLT, parágrafo único de que  “A falta de prova ou inexistindo cláusula expressa e tal respeito, entender-se-á que o empregado se obrigou a todo e qualquer serviço compatível com a sua condição pessoal.”

 

Entretanto, pensamos que a interpretação do art. 456, parágrafo único, da CLT, deve ocorrer em consonância com os art. 444, 460 e 468 da CLT, e, ainda, de acordo com a constitucionalização e com os novos princípios contratuais, o que autorizaria a atribuição ao empregado de funções diversas da inicialmente pactuadas, desde que compatível com a sua qualificação e com a correspondente contraprestação salarial.

 

Como acrescenta Carvalho Filho, entendimento diverso viola a boa-fé objetiva, o equilíbrio das prestações, a valorização do trabalho e o direito constitucional ao salário compatível com a complexidade das funções (art. 7º, V, da CF)[40].

 

Por tais motivos, destacamos, a título ilustrativo, que a Corte Superior tem diversos precedentes pela possibilidade de revisão judicial do salário: TST, 7ª Turma, AIRR, 10840-44.2000.5.40.0451, Rel. Min. Caputo Bastos, DJ 05.09.2008; RR-98300-26.2008.5.04.0019, Relatora Ministra: Delaíde Miranda Arantes, Data de Julgamento: 22.10.2014, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 31.10.2014; RR-47200-47.2004.5.17.0007, Data de Julgamento: 26.02.2014, Relator Ministro: Alexandre de Souza Agra Belmonte, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 07.03.2014. Processo: AIRR-106200-51.2009.5.05. 0131, Data de Julgamento: 05.02.2014, Relator Ministro: João Oreste Dalazen, 4ª Turma, Data de Publicação: DEJT 14.02.2014; Processo: RR-235385-92. 2006.5.12.0054, Data de Julgamento: 12.02.2014, Relator Ministro: Augusto César Leite de Carvalho, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 14.02.2014.

 

Em suma, sempre que restar claro o acúmulo de função ocorrido, impõe-se o reconhecimento de que a ausência de contraprestação salarial equivalente viola os princípios da valorização social do trabalho, da dignidade do trabalhador, o direito ao meio ambiente saudável de trabalho, o art. 7º, XXX, da Constituição Federal, os princípios da boa fé, da comutatividade e da bilateralidade contratuais e aos arts. 444 e 468 da CLT, entre outros tantos, com evidente fraude aos direitos do trabalhador e desrespeito ao princípio constitucional da isonomia salarial, além de configurar desmedida técnica de exploração do trabalho.

 

Em última análise, quando um trabalha por dois, num mercado em  que abunda mão de obra para escassos postos de trabalho, alguém fica sem emprego.

 

 

CONCLUSÃO

 

Um longo percurso decorreu entre a concepção negativa do trabalho até a sua valorização como fonte de dignidade da pessoa do trabalhador.

 

Contudo, práticas empresariais para obter maiores lucros por meio da exploração e precarização do trabalho desmentem todo dia princípios e regras constitucionais e legais.

 

A terceirização e a intensificação do trabalho mediante o regime do “mais trabalho” são alguns exemplos desse quadro. No molde da densificação do labor, avulta a questão do acúmulo de funções, notadamente quando não há a paga equivalente aos serviços adicionados à função original.

 

O acúmulo de funções importa em violação de regras e princípios caros ao direito do trabalho e ao direito contratual em geral, além de configurar afronta aos postulados constitucionais referentes à saúde do trabalhador, à valorização do trabalho e à sua dignidade.

 

Por fim, afastando-se da ótica do trabalhador como indivíduo, atinge a própria coletividade de trabalhadores pelo incremento do desemprego.

 

 

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[1] LALLEMENT, Michel. Le Travail, une Sociologie Contemporaine. Paris: Gallimard, 2007, p. 45-6.

 

[2] LALLEMENT, Michel, ob.cit., p. 46.

 

[3] MANON, S. Le Travail, Cours de Philosophie. http://www.philolos.fr/le-travail. Capturado em:  14 jul. 2013.

 

[4] SALMAN RUSHDIE, entretanto, evoca alguns heróis que resistiram a decidir, agir e trabalhar.  É o Hamlet procrastinador, o Bartleby que prefere nada fazer, o indolente Oblómov – para o escritor, há um deles em todos nós, apesar de todos os discursos e teses em contrário, quando olhamos o estado do mundo e desejamos que nós tivéssemos a opção de nos esconder. Mas o trabalho se impõe, nos expõe, e aniquila o sonho (Trabalho, Revista Granta. Rio de Janeiro: Alfaguara, Objetiva, 2011, p. 5 e 19).

 

[5] “Par les temps qui courent il est de bon ton, lorsqu ´on parle du travail, de le considérer A PRIORI comme un malheur. Un malheur socialement géneré” (DEJOURS, Christophe. Souffrance au Travavail. Lyon: Chronique Sociale, 2012, p. 15).

 

[6] FERRAZ JR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 3. ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 27.

 

[7] FERRAZ JR, Tércio Sampaio, ob. cit., p. 27.

 

[8] MANON, Simone. http://www.philolog.fr/ambiguite-du-travail/. Capturado em: 08 out. 2013.

 

[9] ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987, p. 96-7.

[10] MARX, Karl. Manuscritos Econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 83.

 

[11] HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. 2. ed., Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 313.

 

[12] “Você pode comprar sua presença física em um lugar, você pode até mesmo comprar certo número de movimentos musculares por hora ou por dia, mas não pode comprar a lealdade, a dedicação de corações e mentes. Essas coisas precisam ser GANHAS” (Fernando Borne, apud BOLTANSKI e CHIAPELLO. O Novo Espírito do Capitalismo, p. 89).

 

[13] BOURDIEU retrata essa manipulação efetuada pelo capital, que estimula o “narcisismo das pequenas diferenças” (operários especializados/não especializados; nacionais/emigrantes; homens/ mulheres; experientes/novatos; regulares e terceirizados). As representações estabelecidas segundo o local de trabalho, vestimentas e uniformes, diminutas liberdades, algumas vantagens tidas como privilégios, funcionam como eficientes fatores de encobrimento da exploração do capital, mascarando as estratégias de dominação a que estão submetidos os trabalhadores em geral.  In Meditações Pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 240-50.

 

[14] GRÉGOIRE PHILONENKO (PHILONENKO, Guienne, 1997) relata vários casos em que ele esteve ausente da vida familiar, em situações que para sua família eram excepcionais (nascimento, explosão de gás em seu prédio), tamanho era seu desejo de satisfazer o empregador (BOLTANSKI e CHIAPELLO, ob. cit., p. 596).

 

[15] Exemplo dessa identificação encontramos na crítica de A. GORZ: “O vendedor deve fazer com que esqueçam que seu objetivo é de vender, e, tratando o cliente como uma pessoa única, singular, deve dar à relação comercial a aparência de uma relação privada à qual a lógica econômica não se aplica. O valor do serviço de pessoa a pessoa deixa de ser mensurável na medida em que esse serviço perde seu caráter de trabalho social. Essa aparente personalização da relação entre prestadores de serviços e clientes é, de fato, apenas a ilustração concreta da personalização da relação que a firma procura estabelecer com sua clientela. Com efeito, os prestadores de serviço agem nesses casos como representantes pessoais da firma. Não são eles que emprestam à firma sua personalidade, é exatamente o contrário: é a personalidade da firma que se exprime através deles. Eles têm o estilo, o comportamento, a linguagem da ”  (GORZ, André. O Imaterial: conhecimento, valor e capital. Tradução de Celso Azzan Júnior. São Paulo: Annablume, 2005, p. 47).

 

[16] Esse “capital humano” não se produz EX NIHILO; efetua-se sobre a base de uma cultura comum transmitida pela socialização primária dos saberes comuns. Os pais e os educadores,  o sistema de ensino e de formação profissional, participam do GENERAL INTELLECT que irá criar a base sobre a qual o capitalismo irá criar o “novo homem” (cordato, submisso, disciplinado, sempre disposto a colaborar, mas pronto também para subjugar, explorar e ludibriar outros, quando necessário para o bom termo de sua missão...).

 

[17] “No Barclays, nós acreditamos na remuneração em função da performance” tendo em vista que “asseguramos as boas pessoas nas boas funções”, diz o banco inglês. Contudo, suprime de uma tacada 12.000 empregos no mundo inteiro (más pessoas?) e aumenta em 10% o bônus de seus executivos (boas pessoas, certamente)... Fonte: L´Humanité.fr, 11.02.2014, social.eco, Paris, http://www.humanite.fr, capt. em 23/02, 20.47.

 

[18] ALONSO, Luis Enrique. La Crisis de la Ciudadanía Laboral. Barcelona: Antropos, 2007, p. 42.

 

[19] Nessa cultura laboral, cria-se uma auto-exigência permanente em uma espécie de competência permanente e generalizada, que impõe uma pressão contínua, uma subordinação de todos os tempos e horários, a necessidade de suportar cargas mentais, agendas, horários e calendários sobrecarregados. O tempo de trabalho, a carreira, a vida privada ficam totalmente desordenados (ALONSO, Luis Enrique, ob. cit., p. 76).

 

[20] Tal quadro obviamente não excluía a estratégia de manter um “exército de mão-de-obra de reserva”, sempre útil ao capital.

 

[21] “Enquanto ele (o patrão) se besuntava de lama num spa exclusivo, eu cuidei disso, de aparecer e dizer que o trabalho já não é um direito, mas uma concessão” (FOIS, Marcello. Whipping Boy. Revista Granta 8, Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2011, p. 51).

 

[22] Muitas das grandes empresas americanas contratam apenas 10% do seu pessoal. O resto é trabalhador “independente”, terceirizado, temporário, consultor ou empresa individual (GORZ, A. “O Imaterial...”, p. 24).

 

[23] Essa estratégia não prejudica apenas os trabalhadores. Compromete, em muitos casos, a própria atividade empresarial, como é o caso do atendimento ao consumidor do WALMART com filas de 30 a 40 minutos nas suas filiais nos EUA. Além de outras consequências nefastas: limpeza deficiente dos estabelecimentos, comida estragada nas prateleiras, produtos alimentícios de má qualidade e não muito frescos (Fonte: The New York Times, Business, Thursday, april, 2013, p. B.4).

 

[24] GORZ, André. Misères du Préesent, Richesse du Possible. Paris: Galilée, 1997, p. 135.

 

[25] HARDT e NEGRI, ob. cit., p. 3-7.

 

[26] Não confundir com outra estratégia correlata, a FLEXIBILIZAÇÃO das normas laborais.

 

[27] Apud BOLTANSKI e CHIAPELLO, ob. cit., p. 249.

 

[28] BOLTANSKI e CHIAPELLO, ob. cit., p. 243 e 249.

 

[29] BOLTANSKI e CHIAPELLO, ob. cit., p. 270.

 

[30] DRUCK, Graça. A Precarização Social no Brasil, Alguns Indicadores. In Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil, ll, Ricardo Antunes organizador. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013, p. 66.

 

[31] BOLTANSKI e CHIAPELLO registram a elevação da pressão sobre os empregados (do mais simples assalariado ao executivo) para que aumentem seu ritmo de trabalho e que passem a ter uma atenção ininterrupta ao serviço (ob. cit., p. 274).

 

[32] BOLTANSKI e CHIAPELLO, ob. cit., p. 278.

 

[33] DAL ROSSO, Sadi. Mais Trabalho. A Intensificação do Labor na Sociedade Contemporânea. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008, p. 138.

 

[34] DAL ROSSO, ob. cit., p. 139.

 

[35] MEIRELES, Edilton. Abuso do Direito na Relação de Emprego. São Paulo: LTr, 2005, p. 126.

 

[36] CARVALHO FILHO, Renato Sabino. O Acúmulo de Funções e o Direito ao Aumento Salarial.  In Estudos Aprofundados – Magistratura do Trabalho, Salvador: Ed. Jus Podivm, 2013, p. 315.

 

[37] Ob. cit., p. 314.

 

[38] Ob. cit., p. 314.

 

[39] Ob. cit., p. 315.

 

[40] Ob. cit., p. 317.

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Junho/2016