O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A PROTEÇÃO ÀS REGRAS DE LIMITAÇÃO DO TEMPO DE TRABALHO

 

 

 

Vanessa de Oliveira Caetano

Advogada. Especializanda em Processo e Direito do Trabalho pela FEMARGS.

 

 

 

Resumo: Esse artigo buscará analisar o julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 660.010 Paraná, de Relatoria do Ministro Dias Toffoli, e as questões referentes à alteração da carga horária de servidores públicos, especialmente, no que tange ao voto do Ministro Marco Aurélio, e as repercussões dessa decisão para a sociedade.

 

 

 

SUMÁRIO: Considerações iniciais; 1. Alteração da carga horária de servidores públicos e remuneração; 2. Ato jurídico perfeito, direito adquirido e regime jurídico dos servidores públicos; 3. Repercussões sociais da decisão: segurança jurídica e princípio da proibição do retrocesso; Considerações finais; Referências.

 

 

 

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

 

No caso em comento, odontologistas integrantes do quadro de servidores do Estado do Paraná, irresignados com a alteração legislativa oriunda do Decreto Estadual nº 4.345/2005 que fixava a carga horária dos servidores públicos civis em 40 horas semanais, recorreram da decisão de improcedência proferida no Tribunal de origem[1], para que fosse mantida a carga horária de 20 (vinte) horas semanais à categoria, de acordo com a contratação originária, efetivada antes de 1992, além do pagamento das horas excedentes eventualmente realizadas, com o acréscimo remuneratório de 50% e reflexos nos descansos semanais.

 

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) foi no sentido de que era inviável o aumento da jornada dos servidores, sem que houvesse previsão legislativa quanto ao aumento proporcional de seus vencimentos, por afronta ao princípio da irredutibilidade de vencimentos, contido no artigo 37, inciso XV da Constituição Federal (CF) de 1988. Entretanto, restou mantido o entendimento consolidado na doutrina e na jurisprudência de que não há direito adquirido a regime jurídico pelo servidor público, de modo que a Administração Pública teria a prerrogativa de alterar, unilateralmente, a jornada de trabalho, sem que isso representasse ofensa ao direito adquirido insculpido no artigo 5º, inciso XXXVI, CF/88. É este o aspecto que esse artigo buscará aprofundar.

 

 

1. ALTERAÇÃO DA CARGA HORÁRIA DE SERVIDORES PÚBLICOS E REMUNERAÇÃO

 

Segundo a visão do STF, o problema residiu no fato da ausência de previsão legal da contraprestação remuneratória correspondente ao aumento de jornada, vale dizer, seria plenamente válida a lei que alterasse a jornada e pagasse o preço pelo acréscimo de tempo. Esse foi o voto condutor do caso, proferido pelo Ministro Relator Dias Toffoli, acompanhado pelos demais, exceto, pelo Ministro Marco Aurélio, que restou vencido, em parte.

 

O interessante desse voto é, justamente, o conjunto das provocações lançadas pelo Ministro Marco Aurélio[2], mas que não restaram aprofundadas ou mesmo enfrentadas por seus pares. Ele observa:

 

[...] não se pretende simplesmente que seja fixada remuneração que cubra as oito horas, mas que realmente, já que, inclusive, o aumento da jornada desarruma a vida do cidadão – e está em jogo a dignidade do servidor -, sejam mantidos os parâmetros anteriores.

 

E reforça posteriormente:

 

Eles não pedem simplesmente que fiquem submetidos à jornada de oito horas, porque sabemos que majoração de jornada, chegando-se à dobra, repercute na vida das pessoas. Não pedem que seja mantida a jornada de oito horas com o pagamento de vencimentos. O que buscam? Que seja observada a jornada de quatro horas e que o trabalho que prestaram, além destas, seja remunerado.

 

Eis a questão: o aumento da jornada, independentemente da contraprestação remuneratória, afeta a vida dos trabalhadores. Da mesma forma que as pessoas organizam suas vidas conforme seus rendimentos financeiros, elas planejam seus compromissos conforme o tempo dispensado no trabalho.

 

Na sociedade capitalista, na qual vivemos, estamos acostumados à monetarizarização do trabalho, tratando-o como mercadoria, e esquecemos que todo o trabalho é realizado por pessoas, e que não há como dissociar o ser humano do trabalho que realiza. Ao nos darmos conta desse fato, podemos concluir que o Ministro Marco Aurélio está certo: o que está em jogo é a dignidade do servidor.

 

Como é possível depreender do acórdão em análise, os servidores (recorrentes) haviam sido contratados, em regime celetista, antes do ano de 1992, quando houve a transposição desses servidores para o regime estatutário.

 

No ano de 2005, o Decreto Estadual nº 4.345, estabeleceu que a carga horária dos servidores civis do Estado do Paraná, da Administração Direta e Autárquica, é de 40 (quarenta horas)[3], prevendo, ainda, a aplicação de sanções[4] pelo descumprimento da norma que, no caso, implicou descontos nos vencimentos dos servidores que não adotaram a nova carga horária.

 

Ou seja, durante, pelo menos, treze anos (de 1992 a 2005), esses odontologistas exerceram carga horária de 20 (vinte) horas semanais, quando a Administração Pública impôs a realização de carga horária dobrada, o que interfere diretamente na vida desses servidores – no tempo disponível ao estudo, ao lazer, ao convívio familiar e social, ao descanso, à cultura, a atividades sociais, à participação em associações ou em partidos políticos, ou mesmo à realização de outra atividade remunerada, como a docência[5], e quaisquer outras atividades capazes de gerarem a sua realização pessoal.

 

Assim, resta evidente que não se trata da mera contraprestação remuneratória, mas ao tempo e à qualidade de vida desses servidores. Tanto que os próprios servidores pediram a manutenção da carga horária até então realizada. Não há dúvidas que o novo quadro de pessoal irá se submeter às regras vigentes ao tempo da contratação, de modo que, qualquer servidor que ingressar no serviço público, após a vigência do Decreto Estadual, irá exercer carga horária de 40 horas semanais. Mas será que a norma atual pode retroagir para atingir servidores já contemplados por norma anterior mais benéfica?

 

 

2. ATO JURÍDICO PERFEITO, DIREITO ADQUIRIDO E REGIME JURÍDICO DOS SERVIDORES PÚBLICOS

 

Com fundamento no artigo 5º, inciso XXXVI, CF/88 e no artigo 6º, caput e § 1º e § 2º, é possível verificar que a regra, no caso de conflito de leis no tempo, é a irretroatividade da lei em geral, gerando efeitos a partir de sua vigência, para o futuro, sem prejudicar situações já consolidadas pelo ordenamento jurídico anterior.

 

Conforme esclarece Carlos Roberto Gonçalves[6]:

 

Irretroativa é a lei que não se aplica às situações constituídas anteriormente. É um princípio que objetiva assegurar a certeza, a segurança e a estabilidade do ordenamento jurídico-positivo, preservando as situações consolidadas em que o interesse individual prevalece.

 

De acordo com a expressa redação do artigo 5º, inciso XXXVI da CF/88: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

 

Portanto, é possível verificar que o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada são garantias fundamentais que afastam a incidência de determinada lei nova nessas circunstâncias.

 

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), Decreto-lei nº 4.657/42, é compatível com a norma constitucional e traz as definições desses institutos:

 

Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. (Incluídos pela Lei nº 3.238, de 1957)

 

Apesar do regramento explícito, se consolidou na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que o servidor público não tem direito adquirido a regime jurídico. Entretanto, não explicam as razões desse posicionamento. As decisões, normalmente, remetem-se a ementas de acórdãos para dizer que esse é o entendimento pacificado, parecendo não haver razões para mudança do posicionamento firmado. Mas o que pode ser deduzido, dessa afirmativa, é que os servidores públicos podem ser submetidos às alterações legislativas posteriores, de seus estatutos regulamentadores ou outras normas, como o próprio edital do concurso público, e não podem reclamar eventuais direitos, anteriormente reconhecidos de forma legítima, pois não foram adquiridos. Já o ato jurídico perfeito sequer é cogitado no âmbito administrativo.

 

Para ilustrar, Hely Lopes Meirelles[7] afirma que “Não há direito adquirido a regime jurídico, o qual pode ser alterado na forma da Constituição Federal”. Mas, por outro lado reconhece que “quando o servidor preencher todas as exigências previstas no ordenamento jurídico vigente para a aquisição de um direito, este se converte em direito adquirido e há de ser respeitado pela lei nova”.

 

No caso em destaque, os ministros julgadores entendem que a ilegitimidade se restringe ao não pagamento da jornada majorada, pois o Poder Público teria a prerrogativa de alterar a carga horária de seus servidores - não é ato ilícito[8]-, desde que tal procedimento não implique em redução da remuneração dos servidores, seja aumentando a jornada, sem alcançar a remuneração pelo tempo acrescido, seja reduzindo a jornada, com a diminuição proporcional na remuneração dos servidores[9].

 

Portanto, se não há dúvidas quanto ao direito adquirido dos servidores públicos à irredutibilidade remuneratória[10], porque não é possível entender o mesmo em relação à jornada?

 

Conforme lançado no voto do Ministro Marco Aurélio[11],

 

[...] não podemos simplesmente dizer: olha, em princípio, cabe o respeito à equação inicial, ao que ajustado inicialmente quanto à jornada, mas, se o Estado quiser, poderá – brincando com a vida dos prestadores de serviços – impor jornada superior à que vinha exigindo do pessoal da medicina, que é a de quatro horas.

 

Admitir que o Estado possa alterar livremente as regras quanto à jornada, gera uma verdadeira insegurança jurídica aos servidores públicos, além de representar um retrocesso social, o qual é vedado constitucionalmente.

 

 

3. REPERCUSSÕES SOCIAIS DA DECISÃO: SEGURANÇA JURÍDICA E PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DO RETROCESSO

 

É importante registrar, inicialmente, que a decisão em exame reconheceu a violação à garantia da irredutibilidade de vencimentos e declarou a inaplicabilidade do Decreto Estadual aos servidores que já exerciam carga horária semanal inferior a quarenta horas.

 

O argumento dos Ministros foi que eles não poderiam legislar, no caso em concreto, atribuindo a remuneração aos servidores pelo aumento da carga horária semanal.

 

Apesar disso, os efeitos práticos da decisão não foram totalmente prejudiciais aos recorrentes, uma vez que o STF declarou a inconstitucionalidade do Decreto Estadual para estes servidores, porém, determinou que o processo retornasse à fase instrutória porque havia outros pedidos a serem examinados (danos materiais e morais) e, após, que fosse proferida nova sentença[12].

 

Mas a questão que se pretende discutir é se efetivamente a jornada de trabalho realizada pelos servidores públicos pode ser alterada pelo Estado, pois este foi o questionamento levantado pelo Ministro Marco Aurélio em seu voto.

 

A regra, no ordenamento jurídico vigente, é que o provimento dos cargos públicos seja precedido de concurso público de provas ou de provas e títulos[13], estando descriminadas no edital do concurso, dentre outras informações, o cargo, suas atribuições, sua remuneração inicial e a carga horária semanal de trabalho a ser realizada pelo servidor que for aprovado e nomeado para o exercício do cargo. O candidato ao cargo público já conhece, previamente, as condições em que realizará o seu trabalho e já prevê uma jornada fixa.

 

É inegável que a alteração das condições previamente estabelecidas pelo Estado gera uma grande insegurança jurídica para esses servidores. Mas é preciso lembrar que se de um lado o Estado possui prerrogativas, de outro o servidor possui direitos, os quais devem ser respeitados e impõem um limite ao Poder Público.

Nesse sentido, o doutrinador Humberto Ávila[14] elucida que

 

De um lado, e em geral, a eficácia reflexiva e subjetiva do princípio da segurança jurídica, como proteção da confiança, é desenvolvida sob o influxo dos direitos fundamentais, e não, primordialmente, do princípio do Estado de Direito. E os direitos fundamentais, na sua eficácia defensiva e protetiva, só podem ser utilizados pelos cidadãos, não pelo Estado.  Ao Estado falta o substrato pessoal, a vinculação com o exercício da liberdade, a relação com a dignidade humana e a posição de destinatário das normas: o Estado é uma instituição objetiva, não uma pessoa humana; não exerce liberdade, mas competência e poder; não tem dignidade; não é destinatário das normas, mas seu editor.

 

No julgamento do Mandado de Segurança (MS) nº 25.875/DF, o relator, Ministro Marco Aurélio[15] ressalta:

 

Paga-se um preço por se viver em um Estado Democrático e ele é módico – o respeito irrestrito às regras estabelecidas. Somente assim se chega à almejada segurança jurídica e esta, sob o normativo, tem como primeira condição a irretroatividade da lei. A retroação fere de morte a paz social, levando os cidadãos a viverem à base de solavancos, à base de sobressaltos, tendo a vida, de uma hora para outra, desarrumada.

 

Portanto, a irretroatividade da lei se vincula à segurança jurídica, que também se vincula ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Como bem destacado pela doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro[16],

 

A necessidade e conveniência de respeitar direitos adquiridos – ressalvada a hipótese de verdadeira revolução na ordem estabelecida – encontra fundamento em princípios e valores maiores que estão na base do ordenamento jurídico constitucional em um Estado de Direito Democrático. O valor maior é o da segurança jurídica, que, com certeza, constitui a principal justificativa para a regra do respeito aos direitos adquiridos, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Ao lado dele, os princípios da boa-fé e da confiança legítima, que devem nortear as decisões do poder público e que não se compadecem com as mudanças nas regras do jogo quando o servidor já conquistou os seus direitos, acreditando na validade e na força jurídica da Constituição que serviu de fundamento à outorga.

 

A doutrinadora[17], inclusive, defende que mesmo uma Emenda Constitucional deve observar os direitos adquiridos pelo servidor público instituídos pelo poder constituinte originário:

 

Se o constituinte originário decidiu inserir a proteção dos direitos adquiridos, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada, entre os direitos e garantias individuais, é porque os considerou fundamentais. Na vigência de cada emenda que altera as regras sobre regime constitucional dos servidores públicos, novos servidores vão completando os respectivos requisitos e fazendo jus aos benefícios correspondentes, os quais passam a ser protegidos pela regra do direito adquirido. Não é possível que a cada alteração constitucional, por meio de emenda, esses mesmos servidores tenham sua situação afetada, em detrimento da estabilidade das relações jurídicas com o Poder Público.

 

Portanto, resta evidente a existência de limites ao Poder Público ao reformar as legislações que regulamentam os direitos dos servidores públicos, o qual perpassa o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada, à confiabilidade e à boa-fé objetiva que estão atrelados à segurança jurídica e à dignidade da pessoa humana.

 

A corroborar com esse entendimento, Humberto Ávila[18] destaca:

 

Com efeito, esses ideais parciais que compõem o ideal maior de segurança jurídica constituem os pressupostos para a realização do ser humano: sem um ordenamento jurídico minimamente inteligível, estável e previsível o homem não tem como se autodeterminar, plasmando o seu presente e planejando o seu futuro com liberdade e autonomia.  Sem essas condições, portanto, o homem não tem como se definir como um sujeito autônomo e digno. A segurança jurídica constitui, assim, o pressuposto jurídico para a realização da dignidade humana. Em razão disso, pode-se afirmar que a dignidade humana é um fundamento indireto da segurança jurídica. Sem esta última, a dignidade humana, como participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, fica severamente restringida.

 

Evidentemente que a dobra da jornada de servidores públicos, que por mais de dez anos realizaram jornada de vinte horas semanais, afeta a autonomia e a liberdade dessas pessoas. Isso traz, por consequência,  maior desgaste físico e psicológico no trabalho, uma vez que esse servidor dispensará maior tempo no trabalho para desenvolver a mesma atividade, e viverá sob a angústia de nova interferência estatal que reduza ou retire os seus direitos até então respeitados. Ademais, o aumento da jornada para os servidores em atividade, reduz a necessidade de nomeação de  novos servidores, sobrecarregando os servidores em exercício, o que afeta diretamente a qualidade da prestação do serviço público.

 

Certamente, a sociedade clama pela excelência na prestação do serviço público, porém, para que seja alcançada, é preciso investir na capacitação e qualificação desses servidores, bem como, garantir remunerações adequadas, com efetivas possibilidades de ascensão na carreira pública e o mais importante: que se preservem os direitos já conquistados por estes servidores, sob pena de violação ao princípio do não retrocesso.

 

Segundo Ingo Wolfgang Sarlet[19] “a problemática da proibição do retrocesso guarda íntima relação com a noção de segurança jurídica”. Para o autor,

 

[...] a plena e descontrolada disponibilização dos direitos e dos projetos de vida pessoais por parte da ordem jurídica acabaria por transformar os mesmos (e, portanto, os seus titulares e autores) em simples instrumento da vontade estatal, sendo, portanto, manifestamente incompatível mesmo com uma visão estritamente kantiana da dignidade.

[...] a dignidade da pessoa humana não exige apenas uma proteção em face de atos de cunho retroativo (isto, é claro, quando estiver em causa uma efetiva ou potencial violação da dignidade em algumas de suas manifestações), mas também não dispensa – pelo menos é esta a tese que estaremos a sustentar – uma proteção contra medidas retrocessivas, mas que não podem ser tidas como propriamente retroativas, já que não alcançam as figuras dos direitos adquiridos, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada.

 

Diversamente da iniciativa privada, que se pauta pela competitividade de mercado para obtenção de lucro, a Administração Pública visa, primordialmente, o atendimento do interesse público. Admitir que o Estado altere a jornada dos servidores públicos, além de afetar diretamente a vida dos servidores, acaba por estimular a lógica capitalista na Administração Pública. Através desse acórdão foi possível verificar a quantidade de legislações que previram o aumento da jornada dos servidores, sem o pagamento correspondente, ou a redução da jornada, com a diminuição da remuneração, gerando um efetivo enriquecimento ilícito da Administração Pública.

 

Ainda, vale salientar que a Administração Pública se pauta por uma série de princípios, dentre os quais, o princípio da moralidade. De acordo com Humberto Ávila[20], o princípio da moralidade possui caráter dúplice:

 

[...] a exigência de comportamentos sérios e leais por parte da Administração Pública: sérios, no sentido de fundamentados e justificados; leais, no sentido de respeitarem a confiança e as expectativas legítimas do cidadão. São justamente essas exigências de seriedade e de lealdade que compõem o ideal de segurança jurídica. Elas redundam, em maior ou em menor medida, na busca do autêntico interesse público, não confundível com o interesse do aparato estatal ou do erário, mas no respeito aos interesses privados e na observância da boa-fé objetiva.

 

Portanto, na lógica administrativista vigente, não basta a legalidade dos atos administrativos. A moralidade também deve estar presente e afeta a validade do ato. Assim, cabe indagar se a alteração da jornada de trabalho pelo Poder Público não atinge a moralidade administrativa, uma vez que se espera o respeito aos interesses privados e à boa-fé objetiva, como medida de segurança jurídica.

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Como foi possível observar, há diversas razões para se repensar sobre o direito adquirido dos servidores públicos, bem como, o ato jurídico perfeito, uma vez que ambos são garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito assegurados no corpo jurídico da Constituição de 1988.

 

As prerrogativas da Administração Pública encontram limites, dentre os quais, os direitos dos servidores públicos que devem ser observados e respeitados, inobstante os constantes ataques nos últimos tempos. O aumento dos descontos na folha de pagamento dos servidores, o parcelamento de seus vencimentos ou a alteração nas condições de aposentadoria, inclusive, permitindo a permanência da contribuição de servidores aposentados que recebam acima do teto do Regime Geral da Previdência Social, causam verdadeira insegurança jurídica e social, já que essas medidas atingem não só os servidores, mas a população em geral.

 

Diante da situação caótica em que vivemos, a preservação de direitos é medida que se impõe, sob pena de haver um grande retrocesso jurídico e social. Também é necessário atentar que os direitos não se resumem ao aspecto remuneratório. O caso analisado demonstra que os servidores não queriam apenas o pagamento das horas trabalhadas além da carga horária semanal anteriormente realizada, mas, principalmente, a manutenção da jornada reduzida, ou seja, esses servidores pretendiam o resguardo dos direitos que haviam adquirido ao longo da carreira pública.

 

No âmbito do Direito do Trabalho, verificamos que a exceção constitucional se tornou a regra e vemos diariamente trabalhadores que realizam jornadas superiores ao limite constitucional. Diante da habitualidade da prestação de horas “extraordinárias”, estas se tornaram ordinárias e isso não pode ser admitido no nosso sistema jurídico, porque não melhora as condições humanas e de uma existência digna desses trabalhadores. Tanto que hoje se fala em dano existencial, relacionado ao dano ao projeto de vida, normalmente relacionado ao excesso de jornada.

 

Portanto é essencial que se discuta a jornada a que os trabalhadores em geral (no âmbito do serviço público e no âmbito privado) estão submetidos. O desgaste físico e psicológico afeta a saúde das pessoas, a qualidade na prestação do trabalho, a realização e satisfação pessoal e a sociedade. Jornadas de trabalho excessivas elevam as chances de acidentes de trabalho e doenças ocupacionais e, por consequência, as incapacidades para o trabalho.

 

Assim, é preciso prezar pela estabilidade nas relações jurídicas e sociais, que devem estar pautadas pela boa-fé objetiva e a confiabilidade, pelo efetivo cumprimento das normas constitucionais e com o projeto de sociedade nelas estabelecidas que buscam garantir a dignidade humana.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: entre Permanência, Mudança e Realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011.

 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

 

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. vol. 1. 16. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.

 

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 1: Parte Geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito Administrativo Brasileiro. 40. ed. atual. até a EC 76/2013. São Paulo: Malheiros, 2014.

 

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.

 


[1] A interpretação do Tribunal de origem foi no sentido de que a alteração da jornada de trabalho é ato discricionário da Administração Pública e que o aumento observou o limite constitucional da duração do trabalho. Os recorrentes alegaram, em Recurso Extraordinário, a afronta aos artigos 5º, XXXVI (direito adquirido e ato jurídico perfeito), 7º, VI, 39, § 1º, II, e 93, IX, CF/88.

 

[2] STF, ARE 660.010, p. 6-8 do inteiro teor do acórdão. Disponível em: . Acessado em: 20.07.2016.

 

[3] Art. 1º. O servidor público civil do Estado do Paraná, da Administração Direta e Autárquica, deverá laborar em jornada pela carga horária de seu cargo adotando-se, nos casos específicos, o regime de turno de trabalho conforme estabelece a legislação estadual, para atendimento integral do serviço. § 1º. Entende-se por carga horária a quantidade de horas semanais a que deve se submeter a atividade laborativa do cargo público, que é de 40 (quarenta) horas.

 

[4] Art. 5º. Ao servidor que não cumprir as disposições do presente Decreto serão aplicadas as sanções previstas na Lei Estadual nº 6.174/70.

Outra questão que não fica clara é se a norma nova efetivamente se aplicaria ao caso dos servidores litigantes por duas razões: a primeira, é que no voto consta que os servidores laboravam numa antiga Fundação e a lei fala em servidores da Administração Direta e Autárquica, e a segunda, é quanto à existência de lei especial que se aplique aos odontólogos, uma vez que integram o quadro de profissionais da saúde que, normalmente, possuem jornada reduzida. Segundo o parecer do Subprocurador-Geral da República, a Lei nº 3.999/61 e o Decreto lei nº 2.140/84, ambos federais, estabelecem jornada reduzida para os odontólogos e, portanto, se aplicaria o regramento do § 2º, art. 53 da Lei Estadual nº 6.704/70 (Estatuto dos Funcionários Públicos do Estado do Paraná) que exclui da regra geral da jornada os servidores abrangidos por regramento federal específico (p. 43 do inteiro teor do acórdão). Aliás, esta também é a regra geral de hermenêutica jurídica que diz que, no caso de conflito de normas, a lei especial afasta a incidência da lei geral. Apesar disso, o Recurso Especial não foi admitido e não houve recurso dessa decisão.

 

[5] Vale destacar que o art. 37, inc. XVI, CF/88 estabelece o seguinte: “XVI - é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI: a) a de dois cargos de professor; b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico; c) a de dois cargos ou empregos privativos              de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 34, de 2001).

 

[6] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, volume 1: Parte Geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 83.

 

[7] MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito Administrativo Brasileiro. 40. ed. atual. até a EC 76/2013. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 485.

 

[8] De acordo com o Código Civil de 2002: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O entendimento da jurisprudência, no caso, é que só haveria ilicitude por parte do Estado se o aumento da jornada superasse o limite constitucional de quarenta horas semanais.

 

[9] Nesse sentido, os precedentes: RE nº 255.792 e MS nº 25.875/DF, ambos de relatoria do Ministro Marco Aurélio, RE nº 234.004/GO, relator Ministro Ricardo Lewandowski e o ADI nº 2.238-MC, relator Ministro Ilmar Galvão que concedeu medida liminar para suspender os efeitos do § 2º do art. 23 da LC nº 101, a conhecida Lei de Responsabilidade Fiscal, que permitia a redução temporária da jornada de trabalho, com a redução da remuneração. Esses casos também denotam os artifícios utilizados pelo Poder Público que se locupleta indevidamente às custas de normas jurídicas que afrontam a regra constitucional da irredutibilidade de remuneração por meio da alteração da jornada de trabalho.

 

[10] Aliás, cabe registrar o receio dos Tribunais afirmarem expressamente que há direito adquirido à irredutibilidade vencimental. Nos acórdãos, eles afirmam primeiro a existência da garantia da irredutibilidade de vencimentos dos servidores, para, depois, ressalvarem a inexistência de direito adquirido a regime jurídico.

 

[11] STF, ARE 660.010, p. 64 do inteiro teor do acórdão. Disponível em: . Acessado em: 20.07.2016.

 

[12] Nesse aspecto, também cabe uma crítica à decisão do STF. Conforme, mais uma vez, ponderou o Ministro Marco Aurélio, já havia decisão de mérito que era de improcedência dos pedidos. Não era causa de nulidade a justificar o retorno dos autos a fase anterior. Portanto, caberia ao STF decidir o mérito e resolvia-se a questão em fase de liquidação de sentença – ocasião em que seriam verificadas, caso a caso, as horas trabalhadas em excesso.

 

[13] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas  ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998).

 

[14] ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011. pp. 155-156.

 

[15] MS nº 25875/DF, referido na p. 17 do voto. Ainda quanto à irretroatividade da lei, Carlos Roberto Gonçalves (ob. cit., p. 85) afirma que “o sistema jurídico brasileiro contém as seguintes regras sobre essa matéria: “a) são de ordem constitucional os princípios da irretroatividade da lei nova e o respeito ao direito adquirido; b) esses dois princípios obrigam ao legislador e ao juiz; c) a regra, no silêncio da lei, é a irretroatividade; d) pode haver retroatividade expressa, desde que não atinja direito adquirido; e) a lei nova tem efeito imediato, não se aplicando aos fatos anteriores”. De acordo com Gagliano e Pamplona Filho, “Nem mesmo o Estado poderá pretender retroagir os efeitos de uma nova lei para atingir situações definitivamente constituídas, razão por que nos insurgimos, com todas as nossas forças, e por amor à Constituição Federal, contra a falaciosa justificativa de que se deve reconhecer a retroação de efeitos somente às leis de “ordem pública”. E citando Humberto Theodoro Jr. prosseguem: “Não há na Carta Magna dispositivo algum, no campo da intervenção econômica, que autorize o legislador, a pretexto de ordem pública, a ignorar os direitos fundamentais que a própria Constituição institui, para servir de base ao sistema normativo da nação”. (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Parte Geral. vol. 1. 16. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 119. ob. Cit. Humberto Theodoro Jr., O Contrato e seus Princípios, Rio de Janeiro: Aide, 1993, p. 58).

 

[16] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 23. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 588.

 

[17] Ibid. p. 588.

 

[18] ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: entre Permanência, Mudança e Realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 225.

 

[19] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015. pp. 451-453.

 

[20] ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: entre Permanência, Mudança e Realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 229.

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Janeiro/2017