AUSÊNCIA DE ANOTAÇÃO DE CARTEIRA DE TRABALHO E PREVIDÊNCIA SOCIAL E COMPETÊNCIA CRIMINAL

 

 

 

GUSTAVO FILIPE BARBOSA GARCIA

Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidad de Sevilla. Pós-Doutorado em Direito pela Universidad de Sevilla. Professor Titular do UDF. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Advogado e Consultor Jurídico. Ex-Juiz do Trabalho das 2ª, 8ª e 24ª Regiões, Ex-Procurador do Trabalho do Ministério Público da União e Ex-Auditor-Fiscal do Trabalho.

 

 

 

A Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) tem a finalidade de documentar e comprovar o contrato de trabalho, bem como o tempo de serviço do empregado, para fins trabalhistas e previdenciários.

 

Trata-se de documento de grande importância por ter como objetivo a identificação profissional do trabalhador[1].

 

A Carteira de Trabalho e Previdência Social é emitida pelas Superintendências Regionais do Trabalho e Emprego ou, mediante convênio, pelos órgãos federais, estaduais e municipais da Administração Direta ou Indireta (art. 14 da CLT).

 

Não havendo convênio com os órgãos indicados, ou na inexistência destes, pode ser admitido convênio com sindicatos para o mesmo fim.

 

Em conformidade com o art. 16 da Consolidação das Leis do Trabalho,  a CTPS, além do número, série, data de emissão e folhas destinadas às anotações pertinentes ao contrato de trabalho e as de interesse da Previdência Social, deve conter: fotografia, de frente, modelo 3 x 4; nome; filiação; data  de nascimento, naturalidade e assinatura; nome, idade e estado civil dos dependentes; número do documento de naturalização, ou data da chegada ao Brasil, e demais elementos constantes da identidade de estrangeiro, quando for o caso.

 

A Portaria MTE 210, de 29 de abril de 2008, dispõe sobre a confecção de “CTPS Informatizada”, contendo o denominado “Cartão de Identificação do Trabalhador – CIT”.

 

A Carteira de Trabalho e Previdência Social deve ser obrigatoriamente apresentada, contra recibo, pelo trabalhador ao empregador que o admitir, o qual tem o prazo de 48 horas para nela anotar, especificamente, a data de admissão, a remuneração e as condições especiais, se houver, sendo facultada a adoção de sistema manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério do Trabalho (art. 29 da CLT).

 

As anotações concernentes à remuneração devem especificar o salário, qualquer que seja sua forma de pagamento, seja em dinheiro ou em utilidades, bem como a estimativa da gorjeta.

 

As anotações na Carteira de Trabalho e Previdência Social devem ser feitas: na data-base; a qualquer tempo, por solicitação do trabalhador; no caso de rescisão contratual; quando houver necessidade de comprovação perante a Previdência Social.

 

A falta de cumprimento pelo empregador do disposto no art. 29 da CLT acarretará a lavratura do auto de infração, pelo Auditor-Fiscal do Trabalho, que deve comunicar, de ofício, a falta de anotação ao órgão competente, para o fim de instaurar o processo de anotação, previsto nos arts. 36 a 39 da CLT.

 

É vedado ao empregador efetuar anotações desabonadoras à conduta do empregado em sua Carteira de Trabalho e Previdência Social, sob pena  de multa administrativa e, conforme o caso, havendo afronta a direito da personalidade, condenação em indenização por danos morais.

 

Os acidentes do trabalho devem ser obrigatoriamente anotados pelo Instituto Nacional de Previdência Social na CTPS do acidentado (art. 30 da CLT).

 

Segundo o art. 40 da CLT, as Carteiras de Trabalho e Previdência Social que forem regularmente emitidas e anotadas servem de prova nos atos em que sejam exigidas carteiras de identidade e especialmente: nos casos de dissídio na Justiça do Trabalho entre a empresa e o empregado por motivo de salário, férias ou tempo de serviço; perante a Previdência Social, para o efeito de declaração de dependentes; para cálculo de indenização por acidente do trabalho ou moléstia profissional.

 

Na verdade, a prova do contrato individual do trabalho deve ser feita pelas anotações constantes da CTPS ou por instrumento escrito, mas pode ser suprida por todos os meios permitidos em direito (art. 456 da CLT).

 

Sendo assim, de acordo com a Súmula 12 do Tribunal Superior do Trabalho, “as anotações apostas pelo empregador na carteira profissional do empregado não geram presunção juris et de jure, mas apenas juris tantum”.

 

No mesmo sentido, a Súmula 225 do Superior Tribunal Federal confirma que “não é absoluto o valor probatório das anotações da carteira profissional”.

 

Observados os aspectos acima, discute-se se a ausência de anotação do contrato de trabalho na CTPS do empregado configura delito, ou seja, ilícito de natureza criminal.

 

O art. 49 CLT dispõe que para os efeitos da emissão, substituição ou anotação de Carteiras de Trabalho e Previdência Social, deve-se considerar como crime de falsidade, com as penalidades previstas no art. 299 do Código Penal: fazer, no todo ou em parte, qualquer documento falso ou alterar o verdadeiro; afirmar falsamente a sua própria identidade, filiação, lugar de nascimento, residência, profissão ou estado civil e beneficiários, ou atestar os de outra pessoa; servir-se de documentos por qualquer forma falsificados; falsificar, fabricando ou alterando, ou vender, usar ou possuir Carteira de Trabalho e Previdência Social que assim tiver sido alterada; anotar dolosamente em Carteira de Trabalho e Previdência Social ou registro de empregado, ou confessar ou declarar em juízo ou fora dele, data de admissão em emprego diversa da verdadeira.

 

O art. 299 do Código Penal, ao tipificar o crime de falsidade ideológica, assim prevê:

 

Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular.

Parágrafo único. Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte”.

 

Comprovando-se falsidade, quer nas declarações para emissão de Carteira de Trabalho e Previdência Social, quer nas respectivas anotações, o fato deve ser levado ao conhecimento da autoridade que houver emitido a carteira, para fins de direito (art. 50 da CLT).

 

De forma mais específica quanto ao tema em estudo, o Código Penal,  no art. 297, dispõe sobre o crime de falsificação de documento público, com a seguinte redação:

 

“Art. 297 - Falsificar, no todo ou em parte, documento público, ou alterar documento público verdadeiro:

Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa.

§ 1º - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, aumenta-se a pena de sexta parte.

§ 2º - Para os efeitos penais, equiparam-se a documento público o emanado de entidade paraestatal, o título ao portador ou transmissível por endosso, as ações de sociedade comercial, os livros mercantis e o testamento particular.

§ 3º - Nas mesmas penas incorre quem insere ou faz inserir: (incluído pela Lei 9.983/2000)

I - na folha de pagamento ou em documento de informações que seja destinado a fazer prova perante a Previdência Social, pessoa que não possua a qualidade de segurado obrigatório; (incluído pela Lei 9.983/2000)

II - na Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado ou em documento que deva produzir efeito perante a Previdência Social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter sido escrita; (incluído pela Lei 9.983/2000)

III - em documento contábil ou em qualquer outro documento relacionado com as obrigações da empresa perante a Previdência Social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter constado. (incluído pela Lei 9.983/2000)

§ 4º - Nas mesmas penas incorre quem omite, nos documentos mencionados no § 3º, nome do segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do contrato de trabalho ou de prestação de serviços. (incluído pela Lei 9.983/2000)”.

 

O crime previsto no art. 297, § 3º, do Código Penal é comissivo, no sentido de inserir ou fazer inserir dados falsos.

 

Diversamente, o crime previsto no art. 297, § 4º, do Código Penal é omissivo.

 

Nas duas hipóteses os crimes são formais, não havendo necessidade de se concretizar o resultado ou eventual prejuízo.

 

Como se pode notar, em tese, a ausência de anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social da vigência do contrato de trabalho é considerada crime de falsificação de documento público.

 

Logo, deve-se analisar a Justiça competente quanto ao referido delito.

 

Prevalece o entendimento de que a Justiça do Trabalho, mesmo depois da Emenda Constitucional 45/2004, não tem competência criminal[2].

 

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal deferiu medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.684-0, com efeito ex tunc, atribuindo interpretação conforme à Constituição aos incisos I, IV e IX do seu art. 114, e decidiu que no âmbito da Justiça do Trabalho não está incluída competência para processar e julgar ações penais (STF, Pleno, ADIn 3.684-0/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, DJ 03.08.2007).

 

Em consonância com o art. 109, inciso IV, da Constituição da República, aos juízes federais compete processar e julgar “os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”.

 

Frise-se que a hipótese em estudo não está prevista nos “crimes contra a organização do trabalho”, conforme arts. 197 a 207 do Código Penal, por se tratar, na verdade, de “crime contra a fé pública”, mais especificamente de “falsidade documental”.

 

Anteriormente, a Súmula 62 do STJ assim previa: “Compete à Justiça Estadual processar e julgar o crime de falsa anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social, atribuído a empresa privada”.

 

Pode-se dizer, entretanto, que esse entendimento ficou superado, como se observa no seguinte julgado:

 

“Conflito negativo de competência. Penal. Art. 297, §§ 3º, II e 4º do Código Penal. Omissão de lançamento de registro ou declarações falsas na Carteira de Trabalho e Previdência Social. Interesse da Previdência Social. Competência da Justiça Federal. 1. O agente que omite dados ou faz declarações falsas na Carteira de Trabalho e Previdência Social atenta contra interesse da Autarquia Previdenciária e estará incurso nas mesmas sanções do crime de falsificação de documento público, nos termos dos §§ 3º, II e 4º do art. 297 do Código Penal. Competência da Justiça Federal. 2. Sujeito passivo principal do delito é o Estado, ficando o empregado na condição de vítima secundária. 3. Conflito conhecido para declarar competente o Juízo Federal da 5ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado de São Paulo, ora suscitado” (STJ, 3ª Seção, CC 97.485/SP, Rel. Min. Og Fernandes, DJe 17.10.2008).

 

Não obstante, mais recentemente, o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, em 21 de setembro de 2015, proferiu a seguinte decisão:

 

“COMPETÊNCIA – CONFLITO NEGATIVO DE ATRIBUIÇÃO – MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL E FEDERAL – OMISSÃO DE ANOTAÇÃO DE DADOS EM CARTEIRA DE TRABALHO – DEFINIÇÃO.

1. O assessor Dr. Alexandre Freire prestou as seguintes informações:

O conflito negativo de atribuição concerne a procedimento voltado a apurar a suposta prática de crime de omissão de anotação de dados relativos a contrato de trabalho na Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS (artigo 297, § 4º, do Código Penal).

O Ministério Público Federal remeteu os autos ao Ministério Público do Estado de São Paulo. Este suscitou o conflito negativo, afirmando incumbir àquele a condução da investigação.

A Procuradoria Geral da República manifesta-se pela admissão do conflito negativo de atribuição, para reconhecê-la como sendo do Ministério Público Federal.

2. Preliminarmente, assento cumprir ao Supremo a solução de conflitos de atribuições entre o Ministério Público Federal e o estadual – Petição nº 3.528/BA, de minha relatoria, Diário da Justiça de 3 de março de 2006.

Define-se o conflito considerada a matéria objeto do procedimento de origem, devendo ser levados em conta os fatos motivadores da atuação do Ministério Público. Quando se trata de investigar prática de possível crime de omissão de anotação de dados relativos a contrato de trabalho na Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS (artigo 297, § 4º, do Código Penal), a atribuição, para qualquer ação, é do Ministério Público estadual, e não do Federal, pois inexiste lesão a bem ou interesse da União bastante a potencializar a atração da Competência da Justiça Federal, o que direciona à competência da Justiça Comum estadual para processar e julgar eventual ação penal, consoante, inclusive, enuncia o Verbete nº 107 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça.

3. Ante o quadro, resolvo o conflito no sentido de reconhecer a atribuição do Ministério Público estadual” (STF, Pet 5.084/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Decisão monocrática, DJe 28.09.2015).

 

Cabe esclarecer que a mencionada Súmula 107 do STJ dispõe que: “Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime de estelionato praticado mediante falsificação das guias de recolhimento das contribuições previdenciárias, quando não ocorrente lesão a autarquia federal ”.

 

A rigor, no caso do art. 297, § 4º, do Código Penal, pode-se dizer que o tipo penal envolve interesse da Previdência Social[3], mais especificamente da autarquia previdenciária, integrante da administração federal indireta, tanto que se trata de falsificação de documento público.

 

Ainda assim, defende-se o entendimento de que a matéria em estudo deveria ser disciplinada e sancionada, de modo pleno e eficaz, nos âmbitos administrativo, civil e trabalhista, mas não criminal, uma vez que nem todos os ilícitos devem ser abrangidos pelo Direito Penal, ao qual se reserva a tutela dos valores essenciais à vida em sociedade.

 

De todo modo, quando a própria existência da relação de emprego é verdadeiramente controvertida e duvidosa, não havendo a intenção do agente de omitir em CTPS a anotação da vigência de contrato de trabalho, pode-se dizer que não se observam os elementos do tipo penal em questão.

 

Cabe, portanto, acompanhar a evolução da jurisprudência, em especial do STF, notadamente em composição colegiada, a respeito do controvertido tema.

 


[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Manual de Direito do Trabalho. 8. ed., São Paulo: Método, 2015. p. 158-161.

 

[2] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de Direito Processual do Trabalho. 4. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 149-151.

 

[3] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de Direito da Seguridade Social. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 618-620.

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Dezembro/2015