VÍNCULO DE EMPREGO E TERCEIRIZAÇÃO: LEI 13.429 E AS ALTERAÇÕES PROMOVIDAS PELA LEI 13.467/17

 

 

 

MURILO C. S. OLIVEIRA

Juiz do Trabalho na Bahia e Professor Adjunto da UFBA, Especialista e Mestre em Direito pela UFBA, Doutor em Direito pela UFPR, Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho – IBDT

 

 

 

Art. 5º- C. Não pode figurar como contratada, nos termos do art. 4º-A desta Lei, a pessoa jurídica cujos titulares ou sócios tenham, nos últimos dezoito meses, prestado serviços à contratante na qualidade de empregado ou trabalhador sem vínculo empregatício, exceto se os referidos titulares ou sócios forem aposentados.

Art. 4º- A. Empresa prestadora de serviços a terceiros é a pessoa jurídica de direito privado destinada a prestar à contratante serviços determinados e específicos.   

Art. 5º- A. Contratante é a pessoa física ou jurídica que celebra contrato com empresa de prestação de serviços relacionados a quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal.

 

No bojo da reforma (ou deforma) trabalhista, a Lei 13.467/2017 também estabeleceu modificações no regramento da terceirização disposto, meses antes, pela Lei 13.429/2017. Além de redações confusas e sucessão de modificações, a Lei 6.019/1974, que já cuidava do trabalho temporário e  desta específica terceirização, pretende regular todas as modalidades de terceirização, na perspectiva de franquear a terceirização total e irrestrita, inclusive mediante a chamada de “pejotização” do trabalhador.

 

O art. 5-C da Lei 6.019/1974, criado pela Lei 13.467/2017, prescreve um prazo mínimo de dezoito meses para que o antigo prestador de serviços (empregado ou terceirizado) seja contratado, agora, como pessoa jurídica.  No entanto, este interstício é simplesmente eliminado quando se tratar de trabalhador aposentado.

 

De acordo com o art. 4-A (Lei 13.467/2017), a empresa prestadora, incluído aí o terceirizado “PJ”, deve possuir “capacidade econômica compatível com a sua execução”. Isto é, se sua pessoa jurídica não tiver real propriedade ou capital integralizado, será esta pessoa jurídica prestadora presumidamente falsa, por não cumprir o requisito legal para ser empresa de terceirização.

 

Aparentemente, a regra teria intuito protetivo quando exige um lapso temporal para que os empregados ou terceirizados fossem, para a mesma prestação de serviços, contratados sob a forma de pessoa jurídica. Todavia, esta minúscula garantia termina, a contrario sensu, estabelecendo que é lícita a contratação de trabalhadores para quaisquer atividades como simples pessoas jurídicas, desde que este prestador não tenha sido empregado ou terceirizado nos dezoito últimos meses. Com isso, aqueles trabalhadores que não prestavam serviços anteriormente para determinada empresa poderão ser, imediatamente, contratados como pessoa jurídica.

 

Ou seja, está nas entrelinhas do art. 5-C que o trabalhador agora pode ser “PJ”, nas atividades meios ou atividades fins da empresa tomadora, pois a terceirização alcança “a execução de quaisquer de suas atividades”, vide    art. 4-A da Lei 6.019. Percebe-se aí a tentativa legislativa de simplesmente colocar o regime empregatício da CLT – com vínculo direto com a empresa principal ou liame empregatício com a empresa prestadora – como uma faculdade, a escolha do detentor do poder econômico.

 

No conjunto da Lei 6.019, modificada pelas Leis 13.429/2017 e 13.467/2017, especialmente nos arts 4-A, § 2º, 5-C e 10, há claro intuito de elisão do vínculo empregatício, haja vista que seria possível terceirizar todos os trabalhadores de uma empresa, sendo esta terceirização igualmente possível por meio da “pejotização”.

 

A despeito da pretensão precarizante, o sistema jurídico trabalhista nacional não comporta a contratação via “PJ” como uma opção lícita para  o recebimento de trabalho assalariado. Tanto as normas constitucionais e infraconstitucionais, como os princípios do Direito do Trabalho, não sucumbem à previsão degenerada e oportunista do legislador que simplesmente almeja retirar do contrato de emprego (celetista) seu caráter de standard de regulação da venda de força de trabalho.

 

Na Ordem Constitucional, o princípio da dignidade humana transcende o seu conteúdo original – integridade física e moral e das liberdades públicas (direitos civis e políticos) – para firmar sua dimensão de acesso às condições materiais de subsistência (direitos sociais e econômicos). Age aí o Direito do Trabalho, pois sua diretriz protecionista é uma concretização do princípio a dignidade, ao estancar a perversidade da liberdade de trabalho  e desigualdade econômica com medidas protetivas irrenunciáveis. O fundamento do princípio da proteção reside juridicamente no princípio da dignidade humana.

 

Os demais preceitos constitucionais quando conjugados induzem latentemente a uma postura protetiva. O artigo segundo da Constituição, ao preconizar uma sociedade livre, justa e solidária (art. 2º, I) que erradica a pobreza e a marginalização com a redução das desigualdades (art. 2º, II), para promover o bem de todos (art. 2º, III) quando dirigido às relações de trabalho implica proteção dos hipossuficientes.

 

Explícito no caput do art. 7o da Constituição, precisamente no trecho “são direitos dos trabalhadores, além de outros que visem a melhoria da sua condição social”, a dimensão trabalhista do princípio constitucional da vedação do retrocesso social impede que o sistema brasileiro adote medidas legislativas que piorem a condição do trabalhador, como é o caso desta medida de terceirização via “PJ”. Isto porque os direitos fundamentais são envoltos na pretensão de não retrocesso social, uma vez que, sendo caracterizados pelos ordenamentos fundamentais (indispensáveis), não podem ser suprimidos. 

 

No capítulo da ordem econômica, a Constituição, dispondo sobre os princípios gerais, afirma que estes são fundados “na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”, ungidos pelos “ditames da justiça social” (art. 170, caput), para estipular alguns princípios sobre a matéria, inclusive a busca do pleno emprego (art. 170, VIII). No artigo 193, ao regular a ordem social, estabelece que esta tem “como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais” (art. 193, caput).

 

Deste repertório de normas constitucionais protetivas do trabalhador e direcionadas à justiça social e o pleno emprego, é imperioso concluir que a contratação do trabalhador terceirizado via “PJ” não é uma faculdade equiparável à contratação empregatícia. Nesta ordem constitucional, o standard da regulação trabalhista continua sendo o contrato de emprego com a sua respectiva proteção social, seja o trabalhador terceirizado ou não.

 

No plano das normas internacionais, a substituição de empregados por “PJ”, ainda que depois do prazo de dezoito meses, colide expressamente  com o art. 1º, b da Convenção n. 111 da OIT, ratificada pelo Decreto N. 62.150/1968. Transformar um assalariado típico em pessoa jurídica significa discriminar tais trabalhadores, recusando-lhes “a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego” (art. 1º, b, da Convenção 111), pois a Lei faculta que o tomador simplesmente retire os direitos advindos da relação de emprego dos seus trabalhadores, mediante o artifício formal de contratação por pessoa jurídica.

 

De igual modo, a “pejotização” do trabalhador terceirizado contradiz outro valor jurídico universal: a igualdade. O princípio da isonomia e igualdade – garantia constitucional pétrea insculpida no art. 5º – não valida tratamento jurídico distinto para trabalhadores na mesma situação fática. Neste ponto, vale ressaltar a atual perspectiva jurisprudencial de concretizar a isonomia contra os expedientes de terceirização que atentem ao valor jurídico da igualdade de tratamento para sujeitos nas mesmas condições, como se percebe na OJ 383 da SDI-1 do TST.

 

No âmbito infraconstitucional, os arts. 2º e 3º da CLT estão em pleno vigor com sua definição de empregado como o sujeito que labora pessoalmente de modo remunerado, não-eventual e sob dependência. Sem qualquer modificação e, assim, com eficácia irrestrita, os arts. 9º e o caput do 442 permitem que o magistrado, diante da verificação fática do trabalho assalariado mesmo sob a forma de “PJ”, continue reconhecendo vínculo empregatício, considerando esta forma contratual como expediente fraudulento da relação de emprego.

 

Por fim, os princípios do Direito do Trabalho perduram, a despeito dos desvirtuados propósitos da reforma trabalhista. Ancorado na ordem constitucional, o princípio da proteção não sucumbe diante da deforma legislativa. Lastreado na ordem infraconstitucional (art. 9º e 442, caput), o princípio da primazia da realidade servirá como filtro protetivo contra a precarização do art. 4-C.

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Novembro/2017