O CONTRATO DE TRABALHO INTERMITENTE

 

 

 

ÂNGELA MARIA KONRATH

Juíza do Trabalho do TRT 12ª Região  e Mestre em Direito

 

 

 

O trabalho não é uma mercadoria. A afirmação feita em 1944 na Declaração de Filadélfia marca a principiologia que orienta a OIT e nos remete a reflexão acerca do que é o trabalho na vida das pessoas.

 

No sistema capitalista de produção, o acesso aos recursos mínimos de sobrevivência – como alimentação, moradia habitável, educação e saúde  – são alcançáveis através do resultado do trabalho.

 

A esse kit básico associa-se uma série de outros itens necessários a um grau mínimo de vida civilizada, igualmente dependentes do resultado do trabalho para serem alcançados. É se referir, por indispensáveis que o são, o lazer, a cultura, o vestuário, o desporto, o transporte, a segurança, a comunicação, a informação.

 

Mesmo bens alcançáveis pela seguridade social advêm do resultado do trabalho. Assim, a previdência social, a proteção da maternidade e da infância e a assistência às pessoas desamparadas são lastreadas no trabalho humano.

 

Há, ainda, as necessidades eletivas, que decorrem das opções intersubjetivas dos indivíduos entre diversas coisas de valoração relativizada.

 

A essa dimensão econômica do trabalho, que entrelaça sustento, consumo, produção, geração, distribuição e apropriação da riqueza, agrega-se o aspecto de transcendência humana que está implicado no trabalho e que não pode ser abstraído sem o equívoco de reduzir-se o sentido e a importância do trabalho a mero instrumento do capital e meio de subsistência.

 

O trabalho não é um fim em si mesmo. É um meio. Um meio pelo qual a pessoa obtém seu sustento. Mas não apenas isso.

 

Pelo trabalho a pessoa se expressa no mundo sensível, desenvolvendo habilidades distintas das manifestadas por outras espécies de seres vivos, resultado da inteligência que é capaz de intervir no meio ambiente e produzir um mundo artificial de coisas, e até mesmo viabilizar a conquista do espaço sideral.

 

É também através do trabalho que o ser humano alcança sua autonomia como sujeito integrante das relações sociais, da vida em comunidade. A pessoa ganha identidade social, realiza e se realiza pelo trabalho, ainda que as possibilidades do ser não estejam limitadas às dimensões do trabalho.

 

Justamente por todos esses aspectos é que o trabalho tem sido reconhecido como um direito humano fundamental. Não apenas o direito de ter um trabalho, mas também o direito de ter um trabalho livremente escolhido e capaz de proporcionar condições justas para uma vida digna e de qualidade, com satisfação pessoal e interação na vida social.

 

Daí a Declaração Universal dos Direitos Humanos anunciar, no artigo XXIII, item 1, que “toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, as condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”. E, antes disso, no artigo XXII, a Declaração de 1948 proclama o direito à satisfação dos direitos econômicos, sociais e culturais, reafirmada no Pacto de São José da Costa Rica sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

 

Essa dupla expectativa dimensional quanto ao trabalho, no sentido de meio de prover a subsistência e enquanto fator de identificação e realização do indivíduo, está violada na nova redação do art. 443 da CLT, dada pela Reforma Trabalhista de 2017, que introduz no cenário jurídico laboral a figura do trabalho intermitente, assim definindo:

 

Art. 443. O contrato individual de trabalho poderá ser acordado tácita ou expressamente, verbalmente ou por escrito, por prazo determinado ou indeterminado, ou para prestação de trabalho intermitente.

(…)

§ 3o Considera-se como intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador, exceto para os aeronautas, regidos por legislação própria.

 

Ao alternar períodos de atividade e de inatividade atrelados unicamente às necessidades produtivas da empresa, sem um mínimo de previsibilidade de chamadas e nem de ganho mínimo assegurado ao trabalhador, o contrato de trabalho intermitente (a) transfere ao empregado – que não participa da gestão da empresa – os riscos da atividade econômica; (b) desonera a empresa de sua função social; (c) intensifica a sobrecarga de trabalho, chamando o empregado apenas nos momentos de pico e sujeitando o trabalhador a manter múltiplos vínculos com diversos empregadores; (d) generaliza um padrão excepcional de contratação para todas as atividades e sem um mínimo de garantias de trabalho efetivo; (e) avilta a categoria do setor de serviços, que passa a circular entre uma e outra ocupação, de um emprego para o outro, excluída de qualquer projeto de qualificação profissional; (f) impede a construção de pertencimento do trabalhador a um grupo, a uma coletividade de determinada profissão; (g) aprofunda o distanciamento da consciência de classe, do sentimento de solidariedade; (h) põe a perder a possibilidade de construção de uma profissão de vida inteira.

 

Nesse quadro, percebe-se que o contrato de trabalho intermitente está construído por uma ideologia que mercantiliza esse fazer humano, subtraindo as possibilidades de alcance de seu sentido realizador e reduzindo o trabalho a mero meio de produção de bens e consumo.

 

A contratação intermitente, sem garantias mínimas de chamada e nem de ganho, compromete a subsistência, aprofunda a pobreza, põe em vulnerabilidade o sustento, o planejamento financeiro e a organização familiar, cristaliza o determinismo social atingindo o âmago de proteção laboral da dignidade da pessoa humana.

 

O texto é notadamente inconstitucional.

 

Ora, ao anunciar os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, a Constituição elencou, entre outros, “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”. Em seguida, ao dispor sobre os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, lançou que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”, e que “a propriedade atenderá a sua função social”.

 

Entre os Direitos Sociais, a Constituição relacionou o direito ao trabalho no artigo 6º, e incorporou a progressividade dos direitos sociais trabalhistas no caput do art. 7o ao preconizar como princípio a melhoria das condições de vida dos trabalhadores.

 

E, mais adiante, ao tratar da Ordem Econômica, a Carta Magna pontua a finalidade de assegurar a todas as pessoas uma existência digna, lançando, ao longo dos incisos que se seguem, uma série de princípios direcionados a realização da justiça social, com claros limites ao exercício da atividade econômica (art. 170).

 

Ora, a inserção da livre iniciativa no mesmo dispositivo constitucional que o trabalho, ambas as categorias postas em patamar de Princípio Fundamental (art. 1º, IV) e também como fundamentos maiores da Ordem Econômica (art. 170), está a demonstrar que a iniciativa privada foi alçada para além do interesse meramente especulativo centrado no lucro, estando seu aspecto econômico fundamentalmente ligado ao valor social que possui, ao lado do trabalho.

 

Esse desiderato é negado pela Reforma Trabalhista no contrato de trabalho intermitente.

 

Além disso, o texto abandona os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil perante a OIT, seja na violação da progressividade de direitos direcionada pela Agenda Nacional de Promoção do Trabalho Decente, assumidas pelo Brasil em 2006, imprimindo vício material à Reforma, seja pela ausência de consulta tripartite pontuada nas Convenções 144 e 154  da OIT, caracterizando vício formal no controle de convencionalidade do   texto integral da Reforma Trabalhista.

 

A intermitência coloca em xeque a dogmática jurídica tradicional na interpretação do papel do Estado no exercício de sua soberania e concretização do ideal de justiça social, exigindo dos operadores jurídicos uma postura crítica hermenêutica fundada na integração dos princípios constitucionais pautados nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, balizados pelas normas de direitos humanos e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil perante a OIT, especialmente na promoção do Trabalho Decente.

 

O desafio que a realidade coloca é de resistência à degradação do trabalho e resgate do seu sentido de trabalho vivo e ressignificado.

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Novembro/2017