A ARBITRAGEM E A FIGURA DO TRABALHADOR HIPERSUFICIENTE

 

 

 

NUREDIN AHMAD ALLAN

Advogado Trabalhista e Sindical. Pós-graduado pela PUC/PR.

 

 

 

A Lei n. 13.467/2017 dentre inúmeras alterações que pretende promover na estrutura do direito do trabalho (material e processual) introduz no campo da legislação brasileira trabalhista alguns mecanismos para a solução de conflitos até então não presentes em nosso ordenamento, no que concerne ao direito trabalho. O art. 507-A da CLT traz para o universo dos contratos de trabalho a possibilidade de adoção da figura da arbitragem. O texto legal, inserido pela alteração proposta, consigna a seguinte redação:

 

Art. 507-A. Nos contratos individuais de trabalho cuja remuneração seja superior a duas vezes o limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social poderá ser pactuada cláusula compromissória de arbitragem, desde que por iniciativa do empregado ou mediante a sua concordância expressa, nos termos da Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996.

 

Indiscutivelmente, trata-se de procedimento dos mais polêmicos introduzidos pela nova legislação, na medida em que admite a plena incorporação para os contratos de trabalho, do procedimento de arbitragem, de natureza organicamente civil.

 

Além do que, o faz a partir da adoção de um critério meramente objetivo, qual seja, de o empregado alcançar determinada remuneração contatual. A interpretação de que o empregado assume posição de exceção dentro da relação contratual de trabalho, meramente a par da compreensão de alcançar posição financeira diferenciada não é novidade dentro da legislação em debate, pois dentro do próprio texto legal, a ideia restou anteriormente trazida pela redação do parágrafo único do art. 444 da CLT. Oportunidade na qual o texto destaca que a livre estipulação que refere o caput de mencionado artigo, estende-se – com possibilidade de alteração em prejuízo da legislação-, quando se referir a empregado que receba salário mensal igual ou superior a duas vezes os rendimentos do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social.

 

Denota-se uma clara intenção em promover alteração de bases fundamentais que regem a firmação e a interpretação dos contratos de trabalho, descaracterizando a condição de assimetria existente no âmbito de apontadas relações, induzindo à ideia (equivocada) de que a fixação ou alcance de salário mensal superior à média da população brasileira, autorizaria o surgimento de uma nova categoria de trabalhadores: hipersuficientes.

 

Cumprida a dimensão em relação à qual a legislação apresentada procura sua inserção, bem assim as bases que tentam impor alteração, cabe aprofundar debate acerca da impropriedade da aplicação da regra, ou da lei, de arbitragem, aos contratos de trabalho, independentemente da faixa de remuneração recebida pelo empregado.

 

Com efeito, um dos caráteres nocivos da legislação proposta se trata da intenção de que se insira no ordenamento jurídico do direito do trabalho, a possibilidade da aplicação da arbitragem. Aborda-se o tema no tom de intenção na medida em que detida análise da legislação específica a respeito da arbitragem, para a qual o art. 507-A (da legislação proposta) se remete, importa em evidente incompatibilidade de incidência daquele texto. Isso porque, o art. 1º da Lei n. 9.307/96, que regulamenta o procedimento de arbitragem, ao definir os sujeitos e o objeto a ser transigido, assim tratou: “As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”

 

De plano, o texto mencionado – para o qual o artigo 507-A remete regulação de procedimento -, expressamente autoriza a utilização da arbitragem quando versar acerca de “direitos patrimoniais disponíveis”. Significa dizer que ainda que o texto da Lei n. 13.467/17 tenha buscado a promoção da arbitragem dentro do contrato de trabalho, necessário que se estabeleça interpretação sistêmica, diante do conjunto de normas existentes.

 

Para além do que se pretendeu ao autorizar o sistema de arbitragem, necessária a análise, deste, a par das regras e princípios regentes do direito do trabalho e não o inverso. Cuida-se, então, de avaliar a natureza do que se pretende transigir, mediante o instituto da arbitragem.

 

Para tanto, e fundamental dentro da perspectiva do art. 1º da Lei n. 9.306/97, compreender se os direitos objetos de transação ou composição, no âmbito do contrato de trabalho se tratam, ou não, de direitos disponíveis, pois, hipótese única a ser admitida para a adoção do procedimento de arbitragem. Impossível traçar apontada análise sem que se enfrente debate principiológico no âmbito da ciência do direito do trabalho, para que se imprima validade, ou não, ao comando trazido pela inovação do legislador.

 

Nesse contexto, o direito do trabalho possui como linha condutora – além de princípios comuns de direito, adotados como fontes de normas -, princípios classificados como especiais, guardando relação para o tema em referência   i) o princípio da proteção[1]e ii) o princípio da irrenunciabilidade ou indisponibilidade dos direitos trabalhistas.

 

O princípio da proteção emerge a partir do reconhecimento da assimetria e do desequilíbrio existente dentro do contrato de trabalho, admitindo “uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia – o obreiro -, visando retificar (ou atenuar), no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho”.[2]

 

Trata-se, em verdade, de princípio essencialmente conectado com o direito do trabalho, cuja perspectiva deve instruir a análise da relação contratual trabalhista, irremediavelmente.

 

Oportuno destacar que o princípio da proteção, pautado na reconhecida assimetria e no desequilíbrio objetivo existente na relação de emprego, não guarda relação alguma com as condições do empregado. Compreender a relativização ou mesmo o afastamento de mencionado princípio, importa refutar a essência do que visa a defender este ramo do direito. Isso porque, pode-se excetuar o empregado – se considerada a remuneração trazida pela legislação – de significativa parcela da população brasileira, contudo, jamais eliminar a diferença socioeconômica, se comparado o empregado com o respectivo empregador. A dependência econômica e a subordinação jurídica, vetores fundamentais na perspectiva do princípio da proteção, mostram-se objetivamente presente em todas as relações de emprego, independentemente da faixa salarial assumida pelo empregado. 

 

No tocante ao princípio da irrenunciabilidade ou da indisponibilidade “traduz a inviabilidade técnico-jurídica de poder o empregado despojar-se, por sua simples manifestação de vontade, das vantagens e proteções que lhe asseguram a ordem jurídica e o contrato”.[3]

 

A leitura do princípio da indisponibilidade se conecta com a natureza da formação das normas de direito do trabalho, pois estas devem sempre assegurar garantias a direitos fundamentais e a níveis civilizatórios e inclusivos, permitindo à classe trabalhadora a prevalência e à aplicação do comando constitucional espelhado em vários momentos (arts. 1º, 3º, 5º, 6º e 7º, entre outros). Seria absolutamente contraditório entregar ao princípio da proteção o status que possui e, em contrapartida, render-se a possibilidade de renunciabilidade no campo da manifestação da vontade (do empregado). A análise conjugada e sistêmica dos princípios que regem as relações de emprego não permite esta desconexão interpretativa.

 

Nesse campo, César Leite de Carvalho assim enfrenta:

 

Essa irrenunciabilidade é referida, às vezes, como indisponibilidade ou imperatividade. O caráter imperativo não é o da norma, porque toda a norma o tem (enquanto ordem), mas concerne à peculiaridade de ser inderrogável (jus cogens) a norma trabalhista. Ao cogitar de indisponibilidade, parte da doutrina mantém a sua atenção voltada para a essência do princípio, porém lhe empresta maior amplitude, já que o direito indisponível não é apenas irrenunciável, mas igualmente insuscetível de ser objeto de transação.[4]

 

No âmbito do direito do trabalho a doutrina não trata, porém, da indisponibilidade de maneira única. Ramifica-a em indisponibilidade  relativa e indisponibilidade absoluta, atribuindo a esta, por óbvio, caráter de maior rigidez. Contudo, não parece se tratar da melhor exegese, sobretudo porque a compreensão fundamental do direito ao trabalho, traduz essencialmente a necessidade de entregar caráter civilizatório ao empregado e, por extensão, para a sociedade. Daí porque toda e qualquer compreensão de indisponibilidade haveria de ser absoluta.

 

A perspectiva do princípio da indisponibilidade se encontra traduzida no texto da CLT, de forma imperativa, mediante a leitura dos artigos 9º, 444 e 468 da CLT (inalterados pela Lei n. 13.467/17), por exemplo.

 

O que se toma por base se trata da necessidade de uma análise profunda, jamais perfunctória, do sistema de normas existentes. A mera possibilidade de adoção de cláusula de arbitragem não pode subverter a lógica e a essência de regras imperativas ao contrato de trabalho.

 

Há evidente tentativa de eliminação do mundo do trabalho, e por óbvio de suas regras e princípios, de empregados cuja faixa salarial se elegeu, sem critério e sem cientificidade alguma.

 

Não se pode ter como distante, que a legislação que disciplina a arbitragem parte da perspectiva civilista de que as partes contratantes têm entre si, ao menos, a sensação de liberdade e de igualdade para a celebração do negócio, inclusive, para elegerem os procedimentos destacados em mencionada norma, quanto ao cumprimento e a efetivação da arbitragem.

 

As relações contratuais no âmbito do direito civil, que se prestam a instruir os procedimentos de arbitragem não detêm elemento que afasta por completo a possibilidade de discussão de apontado mecanismo, e que se configura dentro do direito do trabalho, qual seja: a subordinação jurídica. Além dela não há como deixar de considerar que a verticalidade existente no campo da relação de emprego, no que se refere à dependência econômica  se mostra infinitamente mais acentuada, se analisadas mesmo relações contratuais no âmbito de contratos civis, dotadas de maior assimetria.

 

Impossível entender, dada apontada perspectiva que o empregado possa ser dotado absoluta capacidade de contratar quando se coloca na relação de emprego, como mero aderente, rendido pela dependência econômica e pela subordinação jurídica. Aliás, a dependência econômica, em qualquer relação, mitiga com clareza a manifestação da vontade.

 

A defesa de que existe a figura do trabalhador hipersuficiente não passa de um grande engodo, buscando a captura da subjetividade deste segmento profissional, atribuindo a ele a falsa sensação de poder e de autonomia, com o intuito de excepcioná-lo e, imediatamente após, praticar atos lesivos aos princípios que regem a relação de emprego, histórica e indiscutivelmente consolidados.

 

Não menos grave, afastada a tentativa de inserção ou criação de uma categoria de trabalhador que tenha inaplicadas as regras e princípios do direito do trabalho, se a própria legislação específica que disciplina o procedimento de arbitragem, de maneira expressa veda a sua incidência   para o fim de transação ou composição para direitos indisponíveis, o seu lançamento dentro da estrutura do direito do trabalho se mostra absolutamente desarrazoado.

 

Indiscutivelmente, a proposição tem o manifesto interesse de diminuir o número de ações trabalhistas, a partir de uma narrativa de marginalização da conduta processual daqueles que defendem interesses de empregados. Havendo absoluto silêncio acerca das reiteradas práticas de descumprimento, deliberado e premeditado, de empresas, inclusive de grande porte. Medida semelhante se deu com a criação das câmaras de conciliação prévia (no passado) mediante a inserção dos artigos 625-A até “H” na CLT. A experiência, com a presença de comissões compostas por representantes de sindicatos tanto de empregados como de empregadores, não poderia ter sido mais desastrosa. Isso porque, tornaram-se instrumentos para atribuir quitação total e absoluta a contratos de trabalho, por meio de pagamentos de verbas de rescisão, por exemplo. Atualmente as comissões não mais – ou raramente – existem, exatamente por conta de o Judiciário Trabalhista não ter admitido os abusos praticados quanto a apontados contratos.

 

Pode-se argumentar que as transações ou composições (mesmo renúncias) vêm sendo operadas no campo do processo do trabalho, mediante a política institucional de acordos que tem sido uma das grandes referências do judiciário trabalhista.

 

Ocorre que o caminho que se pretende utilizar pela via da arbitragem não concorre com os interesses de manutenção de uma Justiça do Trabalho especializada, podendo se apresentar como um dos significativos passos para a eliminação e extinção deste segmento do Poder Judiciário. A medida integra uma série de ações, que parecem desconectadas, porém, possuem mesmo plano de fundo: alteração do projeto de sociedade, com violenta exclusão social, a partir de um governo ilegítimo, despreocupado com os interesses da classe trabalhadora e atendendo ao sistema financeiro e ao capital internacional.

 

Por fim, no plano da norma positivamente apresentada, com facilidade se pode imprimir afastamento da figura da arbitragem, em razão de sua incompatibilidade com a estrutura do direito do trabalho, a partir da perspectiva de que restam inalterados e presentes na relação de emprego o desequilíbrio, a assimetria, diante da subordinação jurídica e da dependência econômica. A impossibilidade de exercício da autonomia da vontade, de maneira absoluta, tendo em vista as características da relação de emprego, torna furtiva a adoção da arbitragem, sobretudo porque esta é pautada em princípio de liberdade e de igualdade negocial. Inexiste, pois, dentro da relação de emprego, trabalhador hipersuficiente. Além disso, sempre bom recordar que o modelo de arbitragem é comumente empregado no direito anglo-saxônico, cuja base estrutural se apresenta diametralmente oposta as linhas de procedimentos utilizadas em nosso sistema. Mesmo que se imponha adesão ao princípio do diálogo das fontes, não se alcança espaço para que, dentro do direito do trabalho, apontado procedimento possa ser realizado. Se no contrato de trabalho nos deparamos com um estipulante e um mero aderente, não havendo liberdade de eleição (pelo aderente) não há como defender que exista liberdade para arbitrar, sobretudo diante do princípio da indisponibilidade. 

 

 


[1] No que diz respeito ao princípio da proteção Augusto César Leite de Carvalho reconhece como princípios derivados deste o da norma mais favorável e o da condição mais benéfica (in Direito do Trabalho, Curso e Discurso. São Paulo: LTr, 2016. P. 69). Inclusive adotando classificação de grande parte da doutrina e em especial de Américo Plá Rodriguez, jurista uruguaio e um dos grandes expoentes a respeito do tema. Maurício Godinho Delgado, por sua vez, adota o reconhecimento de todos como princípios especiais, contudo, separando-os (in Curso de Direito do Trabalho: revisto e ampliado. São Paulo: LTr, 2016. p. 201-214. Ed. 15).

 

[2] DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho: revisto e ampliado. São Paulo: LTr, 2016. p. 201. Ed. 15.

 

[3]Op. cit. p. 204.

 

[4] CARVALHO, Augusto César Leite de. Direito do Trabalho: curso e discurso. São Paulo: LTr, 2016. p. 73. 

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2017