DIREITOS FUNDAMENTAIS E RELAÇÃO DE EMPREGO

 

 

 

LEANDRO DO AMARAL D. DE DORNELES

Especialista, Mestre e Doutor em Direito. Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFRGS.

 

 

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. A empresa laboral e o tensionamento latente aos direitos fundamentais dos trabalhadores; 2. Direitos fundamentais na relação     de emprego: formulações gerais; 3. Problematizando (ainda mais) a questão; Considerações finais.

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

 

A temática da incidência ou projeção dos direitos fundamentais nos contratos individuais de trabalho cresce em dimensão e importância, por diversos motivos. De um lado, existe a pessoalidade como elemento essencial na caracterização da relação de emprego e, partir dela, a consagração do trabalho, substancialmente, como uma projeção da própria personalidade do trabalhador. Por outro lado, há a subordinação e o uso das prerrogativas inerentes ao poder patronal (especialmente a diretiva, a fiscalizatória e a punitiva) que hiperdimensionam o potencial lesivo da ingerência do empregador no cumprimento contratual – seja, eventualmente, ameaçando a integridade física e moral dos empregados, seja, ainda, invadindo sua intimidade e privacidade (repercussão extra-laboral das diretivas empresariais). Tais questões naturalmente trazem à baila o tema da tutela e da prevalência dos direitos fundamentais e de personalidade do empregado no ambiente laboral.

 

Mas também não pode ser esquecida a ideia de participação integrativa do trabalhador no desenvolvimento da atividade empresarial. O trabalho, que é expressão da própria personalidade do trabalhador, integra-se à empresa, de forma a se constituir em um dos seus elementos essenciais: não há empresa laboral sem trabalho[1]. Assim sendo, determinadas posturas, condutas e convicções da pessoa trabalhadora, mesmo quando evidenciadas fora do ambiente produtivo, podem eventualmente chocar-se com as razões ou interesses empresariais, o que novamente nos conduz à temática central deste artigo.

 

Outro fator que merece reflexão diz respeito ao atual contexto de desenvolvimento das relações humanas e, em especial, as produtivas. O direito do trabalho desenvolveu-se em um período em que distinção entre o espaço coletivo produtivo e o espaço doméstico individual era mais nítida ou clara. Atualmente, o desenvolvimento de ferramentas de comunicação e o uso cultural que se faz delas tornam esta distinção muito rarefeita, sendo que muitas vezes tais espaços confundem-se, potencializando outras situações lesivas aos direitos fundamentais dos trabalhadores.

 

E não é só isso. Os espaços produtivo e doméstico, que cada vez mais se confundem, outrora se situavam predominantemente na esfera privada dos trabalhadores. Atualmente, percebe-se um movimento de publicização da vida privada das pessoas – e também, por obvio, dos trabalhadores – prejudicando ou dificultando a proteção às suas intimidades, facilitando a investigação e a fiscalização indevida de suas convicções, condições e posturas pessoais, enfim, conformando a discussão sobre um possível “direito de desconexão”[2] dos atores laborais. A tudo isto, ainda, soma-se o atual refino teórico e normativo sobre o desenvolvimento dos direitos fundamentais.

 

É especialmente a partir da conjunção destes vários aspectos que a tensão entre os direitos de gestão empresarial e os direitos fundamentais e de personalidade do empregado fica ampliada. Este é o objeto de estudo deste texto. Para tanto, está dividido em três partes. A primeira contextualiza o tema, destacando algumas das particularidades da relação de emprego que evidenciam a importância do assunto. A segunda expõe algumas proposições gerais a partir das quais as situações de tensão devem ser compostas. Por fim, a terceira parte dá continuidade ao tema, problematizando as formulações gerais apresentadas.

 

 

1. A EMPRESA LABORAL E O TENSIONAMENTO LATENTE AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES

 

Como é sabido, o direito laboral, em que pese sua tendência à expansão[3], não regula todas as relações de trabalho, tendo como epicentro uma de suas espécies, qual seja, a relação de emprego. Esta tem seu traço de distinção fundamental determinado por certas especificidades de seus sujeitos (empregado e empregador), atribuindo-lhe características próprias. É justamente nestas especificidades que a relação de emprego complexifica-se diante de outras relações de trabalho, e a situação permanente de tensionamento aos direitos fundamentais dos empregados aflora.

 

Debruçando-se sobre o tema, Monteiro Fernandes sintetiza alguns dos aspectos inerentes à relação de emprego que acabam expondo os direitos fundamentais ao que denomina “situações de compressão”. Primeiro, por ser uma relação de poder de uma pessoa sobre outra. Segundo, em razão da desigualdade entre os sujeitos não se limitar ao aspecto jurídico ou hierárquico (subordinação), mas invariavelmente estar conjugada a outros fatores, como  o econômico (hipossuficiência). Terceiro, por ser a relação de emprego, por natureza, limitadora da liberdade de ação do trabalhador, ou seja, uma relação “confinante”, e muitas vezes conflitante com outras esferas de sua existência pessoal, como a familiar. Quarto, pela profunda implicação da pessoa do trabalhador, em suas várias dimensões, que não somente a técnico-profissional[4].

 

Um fator primordial à compreensão do tema e que deve ser inicialmente considerado diz respeito ao caráter empresarial do empregador: nos termos do art. 2º da CLT, empregador é a “empresa”. Ao bem da verdade, a relação de emprego não se esgota no contexto empresarial – tanto assim, que o legislador estendeu as premissas e efeitos desta relação a outras realidades não tipicamente empresariais (art. 2º, § 1º, da CLT), mas foi a partir deste contexto que se desenvolveu a teoria geral da relação de emprego e se firmaram as suas características essenciais. Além disso, a noção de empresa laboral é bem mais ampla do que a consagrada em outras áreas do saber, possuindo contornos próprios, podendo-se dizer que a diferença entre o desenvolvimento de uma relação de emprego nos contextos empresariais típicos e nos outros não empresariais típicos é mais quantitativa do que qualitativa. Ou seja, é uma distinção de intensidade, e não de substância, por isso que o estado de vulnerabilidade presumida do trabalhador, diante do seu empregador, pode ser percebido tanto nos grandes conglomerados empresarias quanto nos espaços domésticos onde há prestação subordinada de serviços.

 

A empresa laboral é uma comunhão concertada de esforços. Um conjunto de fatores produtivos que, organizadamente, se voltam ao desenvolvimento de uma atividade concertada. A empresa laboral demanda uma infinidade de fatores isolados (fatores de produção) em ação coordenada, organizada. Eis o caráter orgânico (soma de fatores isolados, atuando organizadamente), o que apenas se perfaz com o resguardo do poder de comando (poder de  dar organização, harmonia aos fatores produtivos) recaindo sobre a força de trabalho empregada. Daí a subordinação como elemento essencial da relação de emprego.

 

Essa atividade inerente ao conceito de empregador (empresa) apenas se perfaz por intermédio de força de trabalho. Nesse aspecto, sob a ótica do direito laboral, a força de trabalho assume a condição de um fator produtivo essencial para a empresa, sem a qual a mesma não subsiste, situação que demanda uma disponibilidade permanente de mão de obra. Tendo em vista a essencialidade da prestação e o contexto orgânico patronal, a força de trabalho é incorporada como um fator produtivo: há necessidade permanente e constante de força de trabalho para que a atividade empresarial adapte-se às vicissitudes oriundas do mercado. Assim, surge a exigência de uma disponibilidade pessoal e permanente do trabalhador, da pessoa prestadora;  a necessidade de o prestador estar pessoalmente disponível para receber as ordens oriundas do poder de comando e transformá-las em tarefas concretas e úteis às necessidades empresariais. A essencialidade da força de trabalho só se completa na medida em que esta tem a possibilidade de ser utilmente adequada às necessidades empresariais; para isso, a pessoa prestadora – como receptáculo dos comandos patronais – faz-se presente permanentemente, dando margem ao caráter pessoal da prestação (na prestação impessoal, a margem de manobra ou controle patronal em concretizar e dar utilidade à força de trabalho mostra-se menor, incompatível com o conceito laboral de empresa).

 

Tendo em vista que a força de trabalho reveste-se de um caráter de essencialidade à noção laboral de empresa, somando-se ao fato de ser inseparável da pessoa que o presta – o trabalho é a projeção da própria personalidade do trabalhador – nas relações de emprego opera-se aquilo que alguns autores denominam de integração ou inserção da prestação de serviços[5] e, com ela, um risco latente da própria coisificação do trabalhador. Os poderes patronais justificam-se na medida em que dão utilidade à força de trabalho abstratamente contratada e, nestes termos, gozam de uma legitimidade inicial; mas, sendo esta energia laboral uma projeção da própria personalidade do prestador, pode haver situações em que esta utilidade empresarial projete-se além do espaço produtivo, surgindo as situações de tensão com os direitos fundamentais dos trabalhadores. É o caso, por exemplo, do estabelecimento comercial cuja clientela seleta e conservadora desagrada a existência de vendedores repletos de tatuagens e piercings pelo corpo e rosto, motivando uma ordem patronal restritiva a tais adereços.

 

Mas estas situações de tensão também ocorrem, por certo, durante a permanência do trabalhador no espaço produtivo típico. O exercício das prerrogativas que compõem os poderes patronais potencializa inúmeras situações obscuras, mesmo quando não haja desdobramento ou repercussão direta na vida privada, além-laboral, do trabalhador. É sabido, por exemplo, que o empregador tem assegurada a prerrogativa fiscalizatória, mas o seu legítimo exercício torna-se obscuro em determinadas situações de revistas dos empregados. É pacificamente aceita a afirmação de que o empregador detém legitimamente a prerrogativa diretiva, podendo determinar a maneira pela qual uma tarefa deva ser desempenhada, mas essa situação assume um caráter controvertido quando a ordem exige a realização de tarefas ou atividades usando vestimentas constrangedoras e desconfortáveis para a promoção de produtos. Essa mesma prerrogativa tem o condão de determinar o momento da realização da tarefa, mas quando a exigência recai sobre momentos considerados sagrados pelas convicções religiosas do trabalhador, a questão pode ficar nebulosa. Ainda, é unânime a aceitação da advertência como um instrumento disponível para que o superior hierárquico possa fazer frente a atos faltosos, mas repreensões verbais calorosas em frente a colegas podem macular a legitimidade inicial do ato.

 

Enfim, as situações de possível tensão entre os direitos fundamentais dos trabalhadores e o exercício das prerrogativas componentes do poder patronal são inúmeras.

 

 

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS NA RELAÇÃO DE EMPREGO: FORMULAÇÕES GERAIS

 

Em essência, as situações hipotéticas levantadas ao longo do subtítulo anterior dizem respeito à projeção dos direitos fundamentais nas relações contratuais privadas, em especial, trabalhistas. Inicialmente, convêm recordar que os direitos fundamentais foram concebidos como direitos de salvaguarda dos particulares em face ao Estado, impondo limites à atuação deste. Foi a dinamicidade das relações sociais e jurídicas que, paulatinamente, foi evidenciando situações de afronta de direitos fundamentais nas relações  entre particulares, forçando a reflexão sobre a possibilidade de tutela também neste âmbito.

 

Atualmente parece inegável que eventuais resistências ao entendimento de que os direitos fundamentais são oponíveis ao Estado e também aos terceiros particulares são cada vez menores. Sabino, por exemplo, posiciona-se favoravelmente a esta tese, ressaltando que “a incidência dos direitos fundamentais nas relações particulares não será como ocorre em relação ao Estado, já que todos os indivíduos são titulares de direitos fundamentais”[6]. Molina aborda o desenvolvimento do tema em detalhes, concluindo que a  tese de aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações privadas é triunfante na jurisprudência dos tribunais trabalhistas, embora, em sua visão, a matéria ainda careça de um “refinamento teórico”[7]. Aduz também este autor que “Os direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, após o mecanismo de interpretação e construção das normas jurídicas pelos juristas, ocupam a estrutura de princípios jurídicos, os quais possuem ampla força normativa e são aplicáveis tanto em face do Estado (eficácia vertical) como em face de outros particulares (eficácia horizontal)”[8].

 

Uma vez aceita a tese de que os direitos fundamentais são aplicáveis nas relações “horizontais”, em especial, nas trabalhistas, algumas premissas gerais sobre o tema podem ser destacadas. Primeira delas, resgatando remotamente ensinamentos clássicos como de Perez Botija, é de que a “dependência” inerente à relação de emprego traduz um poder de disposição sobre homens livres e, ao se integrar à empresa, “o trabalhador não abdica da sua condição de cidadão”[9]. Consequentemente, os direitos fundamentais que resguardam essa condição humana não se desfalecem neste ato. Sendo assim, restam salvaguardados, ao menos em sua essência, entre outros, os direitos pertinentes à intimidade (art. 5º, inciso X), à igualdade (art. 5º, inciso I), às liberdades de manifestação de pensamento (art. 5º, inciso IV), de consciência e de crença (art. 5º, inciso VI), de locomoção (art. 5º, inciso XV e LIV), de petição (art. 5º, inciso XXXIV e XXXV), constitucionalmente previstos, seja dentro ou fora do ambiente de trabalho. Portanto, não há hipótese plausível para que situações de trabalho forçado, ou ainda, de imposição de ideias ou crenças pelo empregador aos seus empregados, sejam juridicamente admitidas.

 

Além disso, existem determinados direitos fundamentais que somente emergem a partir da formação do vínculo empregatício, como aqueles inerentes à liberdade associativa ou sindical (art. 8º, caput e incisos, da Constituição), ou que com esta relação jurídica ganham contornos próprios, como os referentes à igualdade nas relações de trabalho. Assim, imposições patronais proibitivas do exercício de prerrogativas inerentes à liberdade sindical igualmente não devem ser admitidas. Da mesma forma, em regra não é justificável a diferenciação de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (art. 7º, inciso XXX, da Constituição), exemplificativamente.

 

No entanto, as hipóteses recém-levantadas são extremas, ferindo direitos fundamentais em sua essência e, portanto, manifesta e claramente abusivas. A questão complexifica-se na medida em que no contra-polo da relação empregatícia também há um sujeito portador de direitos e, no seu legítimo exercício, situações de afronta a direitos fundamentais a priori nem tão evidentes podem ocorrer. Esta é uma segunda premissa geral a ser considerada na análise do tema. O empregador, seja pessoa física ou jurídica, tem resguardados seus legítimos direitos de gestão, interligados ao direito fundamental de livre iniciativa (arts. 5º, inciso XII, e 170 da Constituição), assim como aqueles referentes à sua imagem (art. 5º, inciso X, da Constituição), entre outros. Mais do que isso, embora a relação de emprego não deva ser analisada exclusivamente sob este aspecto, é inegável tratar-se de uma relação jurídica conhecida pela contraposição de interesses das partes. Invariavelmente, tais interesses colidentes podem estar resguardados por direitos fundamentais, que, portanto, tensionam-se mutuamente, complexificando a situação.

 

A questão, nestes casos, resolve-se pela ponderação dos direitos fundamentais eventualmente em colisão, haja vista a natureza principiológica desta classe de direitos[10]. Não há, em princípio, direitos absolutos e, na eventual situação de colisão entre direitos fundamentais do trabalhador e do empregador, conforme o caso, ora um, ora outro, poderá ceder. A ponderação consiste em um método destinado a atribuir “pesos” aos elementos em consideração, o que em geral é feito a partir de critérios delimitados pelos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade, especialmente[11]. Este tema será retomado adiante.

 

Há outro aspecto, entretanto, que não pode ser esquecido. Embora a relação de emprego seja, ao menos, formalizada por intermédio de um contrato, no qual figuram dois sujeitos portadores de direitos fundamentais que invariavelmente podem conflitar, também é inegável que tais sujeitos  não se encontram, a priori, em uma situação de absoluta igualdade. Há reconhecidamente uma série de vulnerabilidades inerentes à condição de empregado[12], com destaque para a posição hierarquicamente superior, ou dito de forma mais enfática, “dominial”[13], do polo patronal. Afinal, trata-se de uma relação em que, ao longo de seu desenvolvimento, o empregador impõe a sua vontade ao empregado, por intermédio do exercício de prerrogativas potestativas que lhe são juridicamente reconhecidas.

 

Mas antes mesmo da vulnerabilidade hierárquica do trabalhador tomar corpo jurídico, o maior poder negocial patronal soma-se à vulnerabilidade econômica que usualmente caracteriza os candidatos ao posto de trabalho, na fase pré-contratual, potencializando ações e investigações lesivas à privacidade e à intimidade do postulante ao emprego[14]. Mesma sorte podem seguir essas classes de direitos fundamentais nos períodos pós-contratuais, em razão, por exemplo, da combinação das desigualdades econômica, social e informacional. Diante dessa realidade, parece inarredável uma nova conclusão (terceira premissa geral), a de que o polo patronal tem uma potencialidade lesiva aos direitos fundamentais dos trabalhadores muito superior do que ocorre na relação inversa.

 

Assim sendo, em linhas gerais, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, nas relações de trabalho, acaba atuando como mais uma projeção da essência protetiva, reversiva de desigualdades, característica do direito do trabalho. Em razão disso, pode-se ter como quarta premissa geral a de que os direitos fundamentais do trabalhador, a priori, constituem um limite geral ao exercício da autonomia contratual do empregador, para quem invariavelmente a aptidão de exercício se apresenta com maior amplitude. Os direitos fundamentais do trabalhador, igualmente, consubstanciam-se em um importante meio de defesa a determinadas atitudes patronais, conformando uma importante esfera limitadora da suposta condição de não-vulnerabilidade patronal e, portanto, de supremacia, diante da também suposta vulnerabilidade laboral. São, portanto, direitos oponíveis pelo empregado e tendem a prevalecer em situações de tensão.

 

Como referido, essa maior potencialidade lesiva a direitos fundamentais por parte do polo patronal é notória durante a execução do contrato de trabalho, impulsionada pela emersão dos poderes patronais, mas também é perceptível já no período pré-contratual, por exemplo, quando da busca por informações referentes à contratação. Além de direitos fundamentais individuais, o sistema jurídico constitucional brasileiro consagra uma série de direitos fundamentais sociais que impõem às empresas determinados deveres inerentes à administração das desigualdades sociais, os quais não podem  ser revertidos aos empregados[15]. Do contrário, haveria uma subversão deste delicado conjunto de ônus e riscos sociais que são imputados aos empregadores como uma tentativa de compensar a vulnerabilidade inerente aos atores laborais. O efeito disso seria oposto ao almejado pelo Estado Social e pela sociedade como um todo, ou seja, ao invés da tentativa de reduzir desigualdades nas relações de classe, haveria a sua potencial ampliação. Assim, a exigência de informações referentes ao mapeamento genético (a fim de verificar eventuais predisposições a determinadas doenças), ao estado gravídico, ao planejamento familiar e quaisquer outras análogas, em linhas gerais, configura prática abusiva, pois além de violar direitos fundamentais individuais dos postulantes ao emprego, interfere ou prejudica o futuro acesso a determinados direitos fundamentais sociais, como os referentes à previdência ou a proteção à maternidade (art. 6º da Constituição). O direito de perquirir as informações pertinentes ao exercício da autonomia contratual patronal, que podem ser relevantes para uma decisão sobre a conveniência ou não da contratação, neste caso, é também limitado, portanto, pela ordem de direitos fundamentais sociais.

 

 

3. PROBLEMATIZANDO (AINDA MAIS) A QUESTÃO

 

Até o presente, foram extraídas algumas formulações gerais sobre o tema da incidência dos direitos fundamentais nas relações de trabalho, as quais são resgatadas, resumidamente:

 

a) os direitos fundamentais são inerentes à pessoa humana, e o trabalhador mantém esta condição ao constituir uma relação de emprego;

 

b) no entanto, no contra-polo desta relação, também há um sujeito portador de direitos – o empregador – cuja pretensão de resguardo aos legítimos interesses também deve ser albergada pelo sistema jurídico;

 

c) em que pese isso, o polo patronal tem um potencial muito maior para lesionar direitos fundamentais dos trabalhadores do que ocorre na relação inversa, não apenas ao longo da execução contratual, mas mesmo antes ou depois de sua constituição;

 

d) assim, os direitos fundamentais dos trabalhadores, a priori, constituem um importante limite geral ao exercício da autonomia contratual do empregador, bem como ao exercício do poder patronal.

 

No entanto, como referido anteriormente, nenhum direito é absoluto, e este postulado também se aplica aos direitos fundamentais dos empregados, ainda mais quando no contra-polo da relação figura um sujeito igualmente portador de direitos. Embora seja plausível adotar a premissa geral de que os direitos fundamentais dos trabalhadores, em grande parte das situações, tendem a prevalecer em situações de conflito, haja vista a sua vulnerabilidade e o maior potencial de agressividade inerente à condição patronal, essa afirmativa não é imune a exceções.

 

Analise-se esta conclusão. Segundo Palma Ramalho, os direitos fundamentais dos trabalhadores podem observar três espécies de limites, quais sejam, extrínsecos, imanentes e voluntários[16].

 

Os limites extrínsecos decorreriam do próprio embate ou tensão entre os legítimos direitos ou interesses dos figurantes na relação jurídica. Aqui a resolução opera-se pelo exercício ponderativo típico, avaliando-se a ordem  de sacrifícios considerados menores, conjugada ao interesse considerado, no caso, preponderante. Nessas situações, inúmeras variáveis podem ser determinantes para que haja uma definição acerca da regularidade ou abusividade da ação do sujeito, como a função e grau de responsabilidades do empregado, ou mesmo o tipo e natureza de atividade e a forma de sua organização pelo empregador[17]. Assim, por exemplo, se assiste direito a um empregado técnico administrativo comum ir trabalhar com a camisa do Grêmio e bradar sua paixão logo após este conquistar um título expressivo,  o mesmo direito não poderia ser exercitado com a mesma plenitude caso  este empregado laborasse no tradicional clube rival, o Internacional. De forma análoga, se em geral um empregado tem direito de professar, no local de trabalho, sua crença em uma religião que condene o consumo de bebidas alcoólicas, o referido direito ficará limitado para o sujeito que comunga da mesma crença, mas que labora em uma loja de cervejas artesanais.

 

Assim, nas situações concretas, antes de tudo, deve ser verificado se a ação supostamente restritiva de direitos fundamentais do trabalhador, tomada pelo empregador em razão de um interesse ou direito que também lhe assiste, está albergada por parâmetros de razoabilidade e/ou de proporcionalidade, especialmente desta. A tomada de ações fiscalizatórias intensas, que tencionam a privacidade e a intimidade dos trabalhadores, em um local de trabalho onde nunca foi constatada nenhuma situação de furto, ou onde sequer há condições para que tal ocorra, de pronto, não se mostra razoável. Da mesma forma, a exigência de uma “postura regrada” aos trabalhadores em sua vida extra-laboral, quando isso em nada contribui ou afeta os rendimentos na linha de montagem, igualmente carece de razoabilidade. Em ambos os casos, não há justificativa aparente para a medida potencialmente agressiva aos direitos fundamentais dos empregados.

 

A questão, entretanto, ainda não se esgota neste plano. Aproveitando os mesmos exemplos acima apontados, determinadas circunstâncias podem agregar-se à situação em análise e conferir às medidas patronais uma aparência inicial de razoabilidade. Assim, furtos reiterados no estoque podem justificar  a adoção de ações fiscalizatórias mais intensas por parte do empregador.   Da mesma forma, a recomendação para restrição de excessos na vida privada pode se apresentar razoável aos atletas de alto rendimento.

 

Mas essas circunstâncias novas apenas induzem a um juízo apriorístico de legitimidade da motivação patronal em reagir ou adotar a ação tensionadora de direitos fundamentais do empregado e, nestes termos, um juízo ainda não definitivo ou conclusivo. Um passo seguinte há que ser observado, qual seja, a verificação da proporcionalidade das medidas patronais tomadas para dar guarida a este interesse inicialmente considerado legítimo. Somente a partir de então haverá condições para que um juízo conclusivo seja estabelecido. Tomando-se como ponto de partida a consideração de que a atitude patronal (medidas fiscalizatórias, emissão de códigos de postura etc.) é um meio visando um fim (preservação do estoque, otimização do rendimento, enfim, proteção ou perseguição a um legítimo interesse do polo empregador), juízos de adequação (“o meio utilizado pelo empregador é adequado para promover o fim visado?”), de necessidade (“dentre os meios disponíveis, razoáveis e igualmente adequados para promover o fim visado, aquele escolhido pelo empregador é o menos restritivo ao direito fundamental atingido?”) e de proporcionalidade em sentido estrito (“as vantagens decorrentes da consecução do fim almejado superam as desvantagens provocadas pelo meio efetivamente adotado por parte do empregador?”) devem ser considerados na verificação de seu eventual excesso ou correção[18].

 

Os postulados hermenêuticos ponderativos, portanto, cuja aplicação é inerente às situações de tensão, podem determinar conclusões diversas à formulação geral de prevalência dos direitos fundamentais do trabalhador. Deve-se considerar que tais formulações genéricas não são absolutas e podem encontrar exceções em determinadas situações de fronteira, especialmente quando o comando patronal é igualmente respaldado por um legítimo direito que lhe assista, somando-se a circunstância de que o sacrifício eventualmente suportado pelo empregador no caso de não cumprimento seja juridicamente mais intenso do que o suportado pelo empregado no caso de cumprimento.

 

Mais do que isso. As prerrogativas patronais que potencialmente podem tensionar direitos fundamentais dos trabalhadores justificam-se em razão da atividade econômica empreendida, sendo, portanto, ferramentas jurídicas pertinentes à gestão empresarial. Assim ocorre, por exemplo, com os poderes diretivo e fiscalizatório, ou ainda, com o direito de obter determinadas informações sobre o empregado, quando este direito subsistir. A pertinência no exercício de tais prerrogativas é verificável em razão do interesse ou necessidade patronal, que é um tanto mais evidenciada quando exercitada no ambiente laboral, no decorrer da prestação de serviços. Por exemplo, se é verdade que, em regra, não seria admissível uma ordem patronal proibindo um determinado empregado de manifestar suas opiniões políticas nas redes sociais em suas horas de lazer, o mesmo não se pode dizer em relação a manifestações ideológicas calorosas no local e horário de trabalho, quando  tal postura eventualmente encontrar resistência de pares e, assim, fomentar discussões acirradas entre colegas e desestabilizar o ambiente laboral. Aqui, um eventual comando patronal proibindo manifestações político-ideológicas durante o horário de trabalho seria juridicamente plausível. Neste último caso, não há uma imposição ou proibição de crença, mas sim um comando restritivo para suas manifestações no ambiente de trabalho em razão de conflitos havidos entre pares. O direito fundamental de crença ideológica, portanto, não estaria lesado em seu núcleo essencial, apenas sofreria restrições, ou melhor, conformações, pontualmente, por entrar em colisão com outros interesses ou direitos legítimos do polo patronal.

 

Situação análoga ocorre com as prerrogativas fiscalizatórias. O monitoramento das ações dos empregados por câmeras de vigilância,  por exemplo, é admissível apenas no local de trabalho, durante a execução do contrato laboral, não na residência do empregado. E mesmo no ambiente laboral, o poder de vigilância encontra limites em locais de extrema privacidade do empregado, como vestiários. Mas nos ambientes de circulação social do estabelecimento são admissíveis tais monitoramentos, quando pertinentes ao interesse empresarial (controle de furtos). Isso porque, de certa forma, um trabalhador, ao firmar ou aderir a um contrato de trabalho, acaba inerentemente legitimando o exercício, sobre ele, do poder patronal e, por consequência, autorizando a conformação de direitos que lhe são fundamentais com outros pertinentes aos legítimos interesses patronais. Outro exemplo afim nos é  dado por Montoya Melgar, ao referir a impossibilidade dos professores de uma escola católica doutrinarem seus alunos na fé maometana[19] – aqui acrescentamos, à revelia do consentimento ou permissão patronal. Ao firmar o contrato de trabalho na condição de professor com uma Escola de base religiosa católica, o empregado auto-limitou seu direito fundamental de livre manifestação e, mesmo sem abandonar a sua fé, a qual continuará exercitando nas horas de lazer, aceitou voluntaria e conscientemente desenvolver em suas aulas o conteúdo programático de base católica previsto no projeto didático-pedagógico da instituição patronal. O mesmo não ocorre quando a escola altera a sua orientação didático-pedagógica para o catolicismo já com o contrato em curso, havendo, neste caso, a liberdade de o professor acatar, ou não, as novas diretrizes, sem que disto lhe resultassem retaliações patronais – embora o vínculo, sem justa causa, possa ser rompido por quaisquer das partes no caso de recusa.

 

Convém reiterar que estas eventuais restrições inerentes à assunção do status empregatício não podem agredir o núcleo essencial do direito fundamental do empregado e, via de regra, não atingem a sua vida extra-laboral. Por conteúdo essencial de um direito fundamental, Martinez entende “o seu núcleo substancial, em certa medida irrestringível, com a perda do qual se desnatura ou fenece”[20]. A regra, portanto, é que a vida privada dos trabalhadores esteja fora da alçada restritiva patronal, mas aqui novamente encontra-se  uma afirmação que pode admitir exceções. Eventuais situações pertinentes à esfera privada do trabalhador, conforme as circunstâncias, podem repercutir diretamente no ambiente laboral. A exigência patronal de que o empregado tenha uma “vida social regrada”, mantendo-se alheio e furtivo a situações polêmicas nas horas de lazer, não é legítima por esbarrar nos seus direitos fundamentais de privacidade. Mas a situação pode mudar de figura quando  tal “regramento” não acarrete sacrifícios exagerados (preservação do núcleo essencial do direito fundamental) e disto dependa diretamente o rendimento laboral, o cumprimento da prestação principal ou a própria imagem da empresa, como ocorre, por exemplo, em relação ao “âncora” do jornal televisivo cuja credibilidade (e audiência) sustenta-se na imagem de sobriedade e seriedade de seus protagonistas.

 

Montoya Melgar concorda que a regra geral, no campo das relações laborais, é a de que a vida privada do trabalhador (seus costumes, preferências, amizades, ideias, opiniões, assim como filiações partidárias, crenças religiosas e afins) fique de fora da esfera diretiva patronal, impedindo investigações ou restrições, neste âmbito, por parte dos superiores hierárquicos[21]. Assim, por exemplo, mecanismos de fiscalização que agridam a esfera íntima tornam-se abusivos, informações que não sejam pertinentes à aptidão laboral ou relevantes para a decisão de contratação são inexigíveis, assim como a exigibilidade de condutas ou posturas privadas (extra-laborais) não encontra, via de regra, respaldo jurídico. Mas a situação pode mudar de figura, nos dizeres de Palma Ramalho, diante da “existência de um nexo relevante entre estas actividades e a prestação de trabalho ou outros deveres laborais”[22].

 

O referido nexo é mais sensivelmente perceptível naquelas empresas que Montoya Melgar classifica como de “tendência ideológica”[23] (partidos políticos, sindicatos, instituições religiosas etc.). Nestas, para o autor, os trabalhadores não poderiam atuar livremente, inclusive em sua vida extra-laboral, conforme o caso, na medida em que seus atos tenham transcendência externa, em flagrante contradição (e prejuízo) com os ideais professados ou perquiridos pelo empregador para o qual laboram. Aqui, novamente, reafirma-se a tese já referida de que o empregado, ao firmar livremente – mesmo que impulsionado por sua hipossuficiência – o contrato de trabalho, acabou por autopromover alguma ordem de restrições. No mesmo sentido, Menezes Leitão expõe que as empresas ideológicas e de tendência exigem uma maior vinculação do trabalhador aos seus fins, que repercutem em diversos momentos da dinâmica contratual, desde a contratação (verificação destas afinidades como juízo de admissibilidade), passando pela execução (restrições à liberdade de expressão do trabalhador) e culminando em sua ruptura (alargamento da justa causa em razão da abrangência de comportamentos do trabalhador que incompatibilizem ou prejudiquem os fins empresariais)[24]. De toda sorte, eventuais limitações a direitos fundamentais dos trabalhadores no campo extra-laboral são excepcionais e devem estar amparadas por uma necessidade patronal robustamente legítima; ainda sim, as ações voltadas à persecução deste interesse ou necessidade serão consideradas abusivas na medida em que se mostrem desproporcionais.

 

Outra situação que pode gerar amplas discussões diz respeito à possibilidade de controle empresarial sobre a própria imagem do trabalhador. O encaminhamento a ser dado a essas situações não foge da sistemática   até aqui exposta, ou seja, a regra é de impossibilidade de ingerência patronal, regra que pode ser equacionada diante de um “interesse relevante do empregador”. Em princípio, o aspecto exterior do trabalhador pertence à sua esfera privada, resguardado por seu direito de imagem. Restrições à aparência do empregado por “mero capricho”, por preferências estéticas ou por orientações morais do empregador de forma alguma são admissíveis. Assim, proibições sobre uso de barba, colocação de piercings ou tatuagens, por exemplo, em regra, não se justificam. No entanto, há situações em que o encaminhamento pode ser diferente, especialmente quando a imagem do trabalhador consubstancia-se em um atributo essencial à prestação laboral e, assim, em uma exigência inerente ao contrato (como no caso de um ator que precisa raspar seu cabelo em nome da credibilidade artística do personagem que irá interpretar), ou ainda, quando a estética pessoal adotada comprometer a sua própria segurança (como no caso do uso de unhas bem aparadas quando houver necessidade extrema com a higienização ou de uso de luvas, ou então, nas situações em que se faça necessário aparar a barba para o pleno funcionamento de máscaras de oxigênio)[25]. Moreira ainda faz referência às situações em que a consolidação de uma determinada imagem for inerente à consecução dos fins empresariais, e a estética dos seus empregados for determinante para tal (cita o exemplo de um empregado de um partido conservador que comparece no trabalho vestido de hippie)[26], embora se possa aduzir, nestes casos, que o limite entre a conformação legítima e a restrição discriminatória dos direitos fundamentais talvez seja um pouco mais nebulosa.

 

Retornando à análise de Palma Ramalho sobre as limitações inerentes aos direitos fundamentais dos trabalhadores, há também os denominados limites imanentes. Estes seriam aqueles inerentes a qualquer direito, definindo a divisão entre o seu exercício regular ou abusivo. Assim, conforme exemplifica a autora, seria o caso de dois empregados despedidos pela prática de atos sexuais no local de trabalho descoberta por um terceiro que se encontrava à espreita, espiando pela fechadura[27]. Aqui não caberia invocar o direito fundamental de privacidade, seja pelo fato do empregado ter aderido conscientemente ao contrato, legitimando prerrogativas fiscalizatórias no ambiente laboral, seja pelo fato de que estaria invocando abusivamente um direito fundamental para mascarar uma conduta irregular e ofensiva ao contra-polo da relação jurídica – a incontinência de conduta. Outro exemplo que pode ser formulado seria o da diretora de uma escola do ensino médio que, ao encontrar o telefone celular de um dos seus professores, descobre imagens gravadas de pedofilia com um dos alunos. Neste caso, assim pode ser entendido, o direito à privacidade igualmente não seria oponível para invalidar a despedida, considerando a ordem de sacrifícios e interesses em jogo – afinal, o empregado estaria invocando abusivamente um direito fundamental para mascarar uma conduta gravíssima, que inviabiliza, de toda a sorte, a manutenção do vínculo empregatício.

 

Em princípio, pode-se afirmar que esta segunda ordem de situações seria aquela que mais se compatibiliza com o exercício de prerrogativas disciplinares por parte do empregador. Nas demais, sejam aquelas que expõem os limites extrínsecos acima referidos, sejam as que evidenciam os limites voluntários, na sequência abordados – não há que se falar em ato faltoso do empregado ou do empregador, ao menos como regra. Assim, nos exemplos anteriores de incontinência de conduta e pedofilia, os respectivos empregados poderiam submeter-se a alguma medida punitiva – advertência, suspensão ou despedida por justa causa, conforme o caso. Isso porque em geral nas situações de tensão entre direitos fundamentais estão em jogo dois legítimos interesses ou expectativas juridicamente albergados e, conforme o caso, o direito dará maior relevância ora a um, ora a outro. O fato de, em uma dada situação, o direito sobrepesar o interesse de uma parte não torna necessariamente ilegítimo o interesse ou direito da outra. Excetuando situações de simulação, má-fé ou abuso da parte, o embate entre legítimas expectativas amparadas por direitos fundamentais irreconciliáveis pode até inviabilizar a continuidade da relação empregatícia, mas não, em regra, por justa causa.

 

Por fim, defende ainda Palma Ramalho a existência de uma terceira ordem limites aos direitos fundamentais, quais sejam, os denominados voluntários. Estes seriam aqueles decorrentes da própria manifestação expressa, livre e consciente do empregado. Aqui, em formulação geral, expõe a autora: “por um lado (...) qualquer pacto ou declaração do trabalhador no sentido da restrição destes direitos fundamentais tem que reduzir-se ao mínimo e deixar intocado o conteúdo essencial daqueles direitos (...); por outro lado (...) [admite-se] a revogação da declaração de (...) limitação destes direitos a todo o tempo e unilateralmente pelo trabalhador”[28]. Seria, por exemplo, o caso do empregado que inicialmente concorda com a utilização de sua imagem na publicidade da empresa em TV aberta, mas posteriormente, em razão do assédio inesperado e dos incômodos na sua vida privada decorrentes da exposição midiática, muda de ideia. Neste caso, a desistência é um direito que lhe assiste, não podendo sofrer qualquer tipo de resistência ou retaliação por parte do empregador. E, de forma alguma, a permissão de uso de imagem poderia ser utilizada pelo empregador de forma a vincular a pessoa do trabalhador (ou seja, não se trata de uma personagem) a uma imagem negativa, como um exemplo de empregado desidioso a ser evitado, pois neste caso o núcleo essencial do direito fundamental de imagem seria agredido.

 

Anteriormente afirmou-se que a mera adesão ao contrato de trabalho pelo empregado pode estabelecer uma auto-limitação aos seus direitos fundamentais, pelo menos a alguns deles, seja pela sua conformação com outros do polo empregador, seja pela legitimação do poder patronal, em que pese as vulnerabilidades negocial e econômica estarem presentes neste ato. No mesmo sentido, Menezes Leitão afirma que “ao aceitar submeter-se à autoridade e direcção do empregador, o trabalhador efectua necessariamente uma autolimitação dos seus direitos de personalidade, a qual, embora eminentemente revogável (...), subsiste enquanto dura o contrato de trabalho”[29]. Entretanto, também se afirmou que esta auto-limitação mantém incólume o núcleo essencial do direito fundamental eventualmente conformado. Aqui, por consequência, também se opera a ordem de limites voluntários apregoada por Palma Ramalho.

 

Reitera-se, no entanto, que tal conformação operada com a adesão contratual é tanto mais evidente durante o horário e local de prestação de serviços (ou seja, no cumprimento estrito das obrigações principais), e um tanto rarefeita, excepcional até, nos tempos e locais extra-laborais. Eventual circunstância transcendente albergada por direito fundamental que inviabilize o cumprimento da prestação laboral – como no exemplo anterior do professor católico na escola maometana – deve ser espontaneamente explicitada pelo candidato a emprego ao longo das negociações; do contrário, não poderá o empregado, após a contratação, invocar seu direito fundamental para se eximir de cumprimento contratual, quando tal circunstância conflitiva já era de seu conhecimento e, apesar disso, optou por aceitar o posto e, por consequência, conformar seu direito fundamental. O mesmo raciocínio aplica-se quando o interesse em jogo diz respeito à sua aparência ou estética.

 

Assim também, por exemplo, um determinado empregado não pode se eximir de prestar seus serviços em determinado dia considerado sagrado por suas convicções religiosas, se essa circunstância era conhecida e não foi objetada por ocasião da contratação. Ao aderir ao contrato, naturalmente, o empregado voluntariamente conformou seu direito fundamental a interesses empresariais que também merecem e encontram respaldo jurídico. Diferentemente ocorre quando a prestação de serviços em dia sagrado for determinada posteriormente, com o contrato já em curso. Neste caso, o empregado tem o direito de acatar a alteração – conformando seu direito fundamental ao legítimo interesse patronal – ou recusá-la, invocando sua crença. A recusa, neste caso, não pode ensejar retaliações patronais, mas, a bem da verdade, permite a desconstituição do vínculo – sem justa causa – por quaisquer das partes. Já o aceite é perfeitamente retratável, a qualquer tempo, pelo empregado, situação que novamente remeteria não a eximi-lo de cumprimento, mas sim, possivelmente, à inviabilidade na continuidade contratual (desconstituição do vínculo sem justa causa).

 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Uma vez que a noção juslaboral de empresa tem na força de trabalho um elemento essencial e plenamente integrado à sua dinâmica, somando-se o fato de que esta energia laboral é uma projeção da própria personalidade do trabalhador e, portanto, dele inseparável, as situações de tensão aos direitos fundamentais são recorrentes nas relações de emprego. Contudo, essa integração do trabalhador ao ambiente empresarial não lhe retira a condição humana ou cidadã e, portanto, seus direitos fundamentais não desfalecem com este ato.

 

No entanto, a questão complexifica-se na medida em que o empregador também é portador de direitos fundamentais e, no seu legítimo exercício, situações de tensionamento invariavelmente podem ocorrer. Em que pese isso, não se pode negar que o polo patronal, por sua situação jurídica (também econômica, social, negocial, técnica e informacional) de autossuficiência e superioridade hierárquica, tem uma potencialidade lesiva aos direitos fundamentais dos trabalhadores muito superior do que ocorre na relação inversa. Consequentemente, os direitos fundamentais do trabalhador devem ser considerados um limite geral ao exercício da autonomia contratual do empregador, bem como ao exercício das prerrogativas potestativas patronais, e tendem a prevalecer nas situações de tensão.

 

Porém, embora seja plausível adotar como premissa geral a de que os direitos fundamentais dos trabalhadores tendem a prevalecer em situações de conflito, essa afirmativa não é imune a exceções. Os direitos fundamentais não são absolutos e devem observar três ordens gerais limitativas, quais sejam extrínsecas, intrínsecas e voluntárias.

 

Os limites extrínsecos decorreriam do próprio embate ou tensão entre os legítimos direitos ou interesses dos figurantes na relação jurídica, e a sua resolução opera-se pelo exercício ponderativo típico. A composição de um eventual conflito, neste caso, perpassa a verificação, inicialmente, sobre a razoabilidade na motivação patronal em adotar a atitude inicialmente tida como lesiva e, na sequência, sobre a proporcionalidade desta mesma atitude.

 

Os limites imanentes seriam aqueles inerentes a qualquer direito, definindo a divisão entre o seu exercício regular ou abusivo. Essa é a ordem de limites que mais se compatibiliza com as prerrogativas disciplinares do empregador. Assim, age abusivamente um empregado que invoca um direito fundamental para mascarar uma conduta gravíssima, obstativa da continuidade do vínculo empregatício, inclusive, por justa causa.

 

Os limites voluntários seriam aqueles decorrentes da própria manifestação livre e consciente do empregado. Neste caso, a restrição do direito fundamental reduz-se ao mínimo, deve manter incólume o seu conteúdo essencial e pode ser revogada unilateralmente pelo trabalhador a qualquer tempo. Nesse aspecto, pode-se afirmar que um indivíduo, ao firmar seu contrato de trabalho, integra-se à empresa e naturalmente autoriza o exercício do poder patronal e, por consequência, legitima a eventual conformação de alguns direitos fundamentais a outros pertinentes aos legítimos interesses patronais.  No entanto, estas eventuais conformações inerentes à assunção do status empregatício, em regra, não atingem a vida extra-laboral do trabalhador, embora esta afirmação, também, não seja imune a exceções.

 

Por derradeiro, há que se registrar a possibilidade de alguns leitores discordarem dos encaminhamentos dados às formulações hipotéticas levantadas ao longo deste texto. Isso significa que, por mais que haja um método claro para a resolução das situações de tensão a direitos fundamentais nas relações de trabalho, ou que se tente extrair premissas gerais para resolver problemas concretos, as vicissitudes, delicadezas e complexidades inerentes ao tema sempre darão margem a amplas discussões e controvérsias. Afinal, por mais paradoxal que isso possa ser, deve-se ter presente que o rigor no método não necessariamente determinará resultados uniformes ou universais.

 


[1] MORAES FILHO, Evaristo de. Do Contrato de Trabalho como Elemento da Empresa. São Paulo: LTr, 1993.

 

[2] ALMEIDA, Almiro Eduardo de; SEVERO, Valdete Souto. Direito à Desconexão nas Relações Sociais de Trabalho. São Paulo: LTr, 2014.

 

[3] DEVEALI, Mario L. Lineamentos de Derecho del Trabajo. 2. ed., Buenos Aires: Tipográfica Editora Argentina, 1953, p. 27-31; GOMES, Orlando, GOTTSCHALK, Elson. Curso de Direito do Trabalho. 6. ed., Rio de Janeiro: Forense, 1975, p. 62-64.

 

[4] FERNANDES, António Monteiro. Direito do Trabalho. 14. ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 188.

 

[5] VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro de. Relação de Emprego: estrutura legal e supostos. 2. ed.,         São Paulo: LTr, 1999, p. 474.

 

[6] SABINO, João Filipe M. L. Os Direitos Fundamentais nas Relações de Trabalho. In PIOVESAN, Flávia; CARVALHO, Luciana Paula V. de (coord.). Direitos Humanos e o Direito do Trabalho.   São Paulo: Atlas, 2010, p. 66-67.

 

[7] MOLINA, André Araújo. Teoria dos Princípios Trabalhistas. São Paulo: Atlas, 2013, p. 127.

 

[8] MOLINA, André Araújo. Teoria dos Princípios Trabalhistas. São Paulo: Atlas, 2013, p. 236.

 

[9] PEREZ BOTIJA, Eugenio. Curso de Derecho del Trabajo. Madrid: Editorial Tecnos, 1948, p. 30.

 

[10] MOLINA, André Araújo. Teoria dos Princípios Trabalhistas. São Paulo: Atlas, 2013, p. 235.

 

[11] ÁVILA, Humberto B. Teoria dos Princípios. 13. ed., São Paulo: Malheiros, 2012, p. 164-165.

 

[12] DORNELES, Leandro do Amaral D. de. Hipossuficiência e Vulnerabilidade na Teoria Geral do Direito do Trabalho Contemporâneo. In DORNELES, Leandro do Amaral D. de; OLIVEIRA, Cínthia M. de (org.). Temas de Direito e Processo do Trabalho. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013, v. II, p. 65-99.

 

[13] RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Estudos de Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2003, v. 1, p. 170.

 

[14] APOSTOLIDES, Sara Costa. Do Dever Pré-contratual de Informação e da sua Aplicabilidade na Formação do Contrato de Trabalho. Coimbra: Almedina, 2008, p. 194-198.

 

[15] APOSTOLIDES, Sara Costa. Do Dever Pré-contratual de Informação e da sua Aplicabilidade na Formação do Contrato de Trabalho. Coimbra: Almedina, 2008, p. 194-210.

 

[16] RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Estudos de Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2003, v. 1, p. 174.

 

[17] RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Estudos de Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2003, v. 1, p. 175-177.

 

[18] ÁVILA, Humberto B. Teoria dos Princípios. 13. ed., São Paulo: Malheiros, 2012, p. 183.

 

[19] MONTOYA MELGAR, Alfredo. Derecho del Trabajo. 35. ed., Madrid: Tecnos, p. 332.

 

[20] MARTINEZ, Luciano. Condutas Antissindicais. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 148.

 

[21] MONTOYA MELGAR, Alfredo. Derecho del Trabajo. 35. ed., Madrid: Tecnos, p. 331.

 

[22] RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Estudos de Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2003, v. 1, p. 173.

 

[23] MONTOYA MELGAR, Alfredo. Derecho del Trabajo. 35. ed., Madrid: Tecnos, p. 332.

 

[24] LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2008, p. 215. Ao nosso entender, entretanto, este “alargamento” das situações de justa causa, no sistema brasileiro, não é tão amplo, como será visto adiante.

 

[25] MOREIRA, Teresa Coelho. O Poder Directivo do Empregador e o Direito à Imagem do Trabalhador. In MOREIRA, António José (coord.). Estudos Jurídicos em Homenagem ao Professor António Motta Veiga. Coimbra: Almedina, 2007, p. 298-320.

 

[26] MOREIRA, Teresa Coelho. O Poder Directivo do Empregador e o Direito à Imagem do Trabalhador. In MOREIRA, António José (coord.). Estudos Jurídicos em Homenagem ao Professor António Motta Veiga. Coimbra: Almedina, 2007, p. 318.

 

[27] RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Estudos de Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2003, v. 1, p. 174-175.

 

[28] RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Estudos de Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2003, v. 1, p. 178.

 

[29] LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2008, p. 151.

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Fevereiro/2016