O SISTEMA DE COMPENSAÇÃO DE JORNADAS “BANCO DE HORAS”

 

 

 

RAFAEL DA SILVA MARQUES

Juiz do Trabalho/RS. Mestre em Direito pela UNISC-RS. Doutor em Direito Público pela Universidade de Burgos na Espanha.

 

 

 

Nos últimos anos, em especial a partir do advento da Lei 9.601/98, o tema atinente ao regime de compensação de jornadas “banco de horas” tem tomado conta de boa parte das discussões judiciais e acadêmicas. Várias decisões pautadas na inconstitucionalidade, ilegalidade e/ou inobservância  às normas coletivas têm feito parte do mundo jurídico. Mais recentemente passou-se a considerar, quando ao regime de compensação de jornadas “banco de horas”, também a questão da superexploração[1], com veia claramente marxista, sugerindo um estudo por parte da sociologia do trabalho, a fim de que, no campo jurídico, se pudesse ver os efeitos desta forma de acerto entre sindicatos junto à pessoa do empregado.

 

Neste pequeno texto deixarei de lado questões como a inconstitucionalidade e superexploração. Também não fará parte de análise o tema da reciprocidade coletiva ou mesmo o fato de os sindicatos de empregados se utilizarem desta parcela como moeda de troca frente aos sindicatos de empresas ou empresas. O foco será a previsibilidade e o acerto não só dos critérios mas também da conveniência e oportunidade na concessão das folgas compensatórias e/ou acréscimo de trabalho.

 

Passemos ao tema central.

 

Todo o debate verdadeiramente democrático envolve ouvir o outro. O discurso, quer de um lado, quer de outro, deve ser claro, sem trapaças, a fim de que se possa retirar, ao final, as regras passíveis de ser aplicadas a todos. A liberdade democrática é a liberdade de se decidir sem manipulação do mundo da vida por quem quer que seja. É daí que vem a democracia. E é daí que surgem, em matéria de direito coletivo do trabalho, as verdadeiras normas coletivas.

 

Estas mesmas normas coletivas, portanto, são fruto do processo comunicativo de formação do direito por autocomposição. Isso quer dizer que como derivam do processo constitucional de formação da norma, este presumidamente comunicativo[2], devem seguir as regras comunicativas para  o estabelecimento de seus conceitos e conteúdos. Se a Constituição é fruto do processo comunicativo, apenas pelo processo comunicativo se forma o direito. O que não é fruto do processo comunicativo, necessariamente, não é direito. É, antes de tudo, um “não-direito”, pois que porta vício de origem, contrário à norma que a legitima, no caso a Constituição Federal. As normas coletivas encontram seu fundamento primeiro de validade na Constituição. Sendo contrárias a esta, serão “não-normas-coletivas” e não terão validade dentro do direito nacional.

 

Pois bem. Dito isso, o que é interessante ressaltar é que as normas coletivas, uma vez aprovando a adoção de regime de compensação de jornadas de trabalho “banco de horas”, já que gestadas conforme o processo democrático/comunicativo de formação das normas constitucionais, apenas tem validade no caso de, não apenas em teoria, mas na prática, preverem, além dos critérios de adoção do regime de compensação de jornadas “banco de horas”, a forma de negociação dos dias e horários em que ocorrerá esta compensação. E isso deve ficar claro para o trabalhador, pois que se a norma é fruto do acerto livre entre as partes (sindicatos) os dias, turnos e horários de compensação, que têm seu fundamento último de validade na norma coletiva, devem seguir este mesmo padrão. Ou seja, o empregado deve saber, perfeitamente, assim como o patrão, os dias em que haverá trabalho a mais e trabalho a menos, a fim de se efetuar a compensação. E este “saber” deve ter origem no debate fundamentado e no acerto livre entre as partes. É bom que se diga que o sistema de compensação de jornadas “banco de horas” apenas tem sentido em casos de empresas que explorem atividades sazonais ou em casos de crise financeira devidamente comprovada (aqui como forma muitas vezes de evitar despedidas).

 

Faço saber que a autodeterminação coletiva é um dos princípios de direitos fundamentais da Organização Internacional do Trabalho, letra “a” da Declaração da OIT sobre os Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, datada de junho de 1998[3], e que o reconhecimento das normas coletivas é norma de direito fundamental dos trabalhadores brasileiros, artigo 7º, XXVI, da CF/88[4]. Ou seja, a democracia é a regra em se tratando de direito coletivo. E se a democracia é a regra, a execução da democracia de forma livre, para fazer valer a norma criada de forma democrática deve ser executada democraticamente e transparente, sob pena de violação do diploma coletivo, o que gera a ilegalidade, já que o respeito às normas acertadas coletivamente consoante artigo 613, VII, da CLT[5], é dever das partes aderentes. Faço saber, ainda, para reforçar, que a norma legal do artigo 59, parágrafo segundo, da CLT[6] não autoriza discricionariedade por parte da empresa ou mesmo dos empregados.

 

Devem trabalhador e/ou sindicato participaram da negociação quanto à conveniência e oportunidade da compensação das horas laboradas a mais. Isso quer dizer que uma vez em havendo crédito por parte da empresa,  ou seja, trabalho a menos, não cabe apenas à tomadora do trabalho exigir os dias de trabalho a mais. Isso igualmente deve ser negociado. De outro lado, em havendo débito por parte da empresa, a negociação quanto às ausências deve ocorrer entre empregado e empregador (ou sindicato e empregador). Não faz parte do poder diretivo do empregador impor este tipo de situação, pois que se a norma autorizante é fruto da negociação, também é a execução prática desta norma.

 

Assim, para concluir, registro que se a norma é fruto do acerto (principal) aquilo que deriva da norma (horas a mais e a menos) também deve ser fruto de acerto. Essa reciprocidade está no seio da negociação coletiva, alçada, no Brasil, como já dito, à condição de direito fundamental social, artigo 7º, XXVI, da CF/88 e, em nível internacional, a princípio de direito fundamental da Organização Internacional do Trabalho.

 

 


[1] LUCE, Mathias Seibel. “A Superexploração da Força de Trabalho no Brasil”. Revista Soc. Bras. Economia Política, São Paulo, nº 32, jun. 2012.

 

[2] O processo comunicativo é fruto do agir comunicativo habermasiano. O agir comunicativo consiste na ação direcionada ao entendimento, onde pelos menos dois sujeitos agem de forma coordenada ou mesmo superam esta coordenação, pelo diálogo, reconhecendo, um frente ao outro, as pretensões de validez deste discurso, afastando-se do cálculo centrado em si, para compartilhar os planos de ação do outro. HABERMAS, Jürgen. Teoría de La Acción Comunicativa. V. I, Racionalidad de la Acción y Racionalización Social, Madrid: Taurus, 1987.

 

[3] http://www.oitbrasil.org.br/content/declara%C3%A7%C3%A3o-da-oit-sobre-os-princ%C3%AD pios- e-direitos-fundamentais-no-trabalho-e-seu-seguimento. Acesso em: 23 nov. 2015, às 13h40min.

 

[4] Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...); XXVI - reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho; (...).

 

[5] Art. 613. As Convenções e os Acordos deverão conter obrigatòriamente: (...); VII - Direitos e deveres dos empregados e emprêsas; (...).

 

[6] Art. 59. A duração normal do trabalho poderá ser acrescida de horas suplementares, em  número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado,           ou mediante contrato coletivo de trabalho. (...); § 2º Poderá ser dispensado o acréscimo de salário  se, por força de acordo ou convenção coletiva de trabalho, o excesso de horas em um dia for compensado pela correspondente diminuição em outro dia, de maneira que não exceda, no período máximo de um ano, à soma das jornadas semanais de trabalho previstas, nem seja ultrapassado o limite máximo de dez horas diárias.

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Fevereiro/2016