CONSTITUCIONALIDADE DO INCISO II DO ARTIGO 62 DA CLT

 

 

 

SERGIO PINTO MARTINS

Desembargador do TRT da 2ª Região. Professor Titular de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP.

 

 

 

SUMÁRIO: Introdução; 1. Evolução legislativa; 2. Empregados excluídos; 3. Constitucionalidade; 4. Portugal; Conclusão.

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

O presente estudo tem por objetivo verificar a constitucionalidade do inciso II do artigo 62 da CLT.

 

A redação do referido dispositivo foi dada pela Lei nº 8.966/94, que é posterior à Constituição de 1988.

 

É preciso, portanto, analisar se o referido preceito se atrita com a Lei Magna de 1988.

 

Para tanto, será apresentada a evolução legislativa da matéria, o ponto de vista dos autores sobre o tema, a jurisprudência do TST e do STF. Ao final, serão trazidas breves considerações sobre o direito português.

 

 

1. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA

 

A redação original do artigo 62 da CLT era a seguinte:

 

“Art. 62. Não se compreendem no regime deste Capítulo:

a) os vendedores pracistas, os viajantes e os que exercerem, em geral, funções de serviço externo não subordinado a horário, devendo tal condição ser, explicitamente, referida na carteira profissional e no livro de registro de empregados, ficando-lhes de qualquer modo assegurado o repouso semanal;

b) os vigias, cujo horário, entretanto, não deverá exceder de dez horas, e que não estarão obrigados à prestação de outros serviços, ficando-lhes, ainda, assegurado o descanso semanal;

c) os gerentes, assim considerados os que investidos de mandato, em forma legal, exerçam encargos de gestão, e, pelo padrão mais elevado de vencimentos, só diferenciem aos demais empregados, ficando-lhes, entretanto, assegurado o descanso semanal;

d) os que trabalham nos serviços de estiva e nos de capatazia nos portos sujeitos a regime especial”.

 

Na redação original do artigo 62 da CLT considerava-se gerente ou empregado de confiança aquele que tinha mandato da empresa, que, como qualquer contrato, pode ser escrito ou verbal. Devia, assim, exercer encargos de gestão, admitindo ou dispensando funcionários, fazendo compras e vendas em nome da empresa, além de ter padrão mais elevado de vencimentos do que outros funcionários. Exercia encargos e prerrogativas do empregador, atuando como se fosse o próprio empregador.

 

A Lei nº 7.313, de 1985, suprimiu a letra b do artigo 62 e renumerou as demais.

 

A Lei nº 8.966, de 27 de dezembro de 1994, deu nova redação ao artigo 62 da CLT:

 

“Art. 62 - Não são abrangidos pelo regime previsto neste capítulo:

I - os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação de horário de trabalho, devendo tal condição ser anotada na Carteira de Trabalho e Previdência Social e no registro de empregados;

II - os gerentes, assim considerados os exercentes de cargos de gestão, aos quais se equiparam, para efeito do disposto neste artigo, os diretores e chefes de departamento ou filial.

Parágrafo único - O regime previsto neste capítulo será aplicável aos empregados mencionados no inciso II deste artigo, quando o salário do cargo de confiança, compreendendo a gratificação de função, se houver, for inferior ao valor do respectivo salário efetivo acrescido de 40% (quarenta por cento)”.

 

Passa o inciso II do art. 62 da CLT a fazer referência a cargo de gestão e não a cargo de confiança, pois a confiança é inerente ao contrato de trabalho.

 

O inciso II do art. 62 da CLT continua utilizando a palavra gerente. A maior dificuldade consiste em dizer quem é gerente, pois o empregado pode ser rotulado de gerente, mas efetivamente não o ser, ou não ter poderes para tanto.

 

É gerente o que tem poderes de gestão, como de admitir ou dispensar funcionários, adverti-los, puni-los, suspendê-los, de fazer compras ou vendas em nome do empregador, sendo aquele que tem subordinados, pois não se pode falar num chefe que não tem chefiados.[1]

 

O atual inciso II do art. 62 da CLT já não menciona a expressão mandato que tanto poderia ser expresso ou tácito, mas o gerente, para ter poderes de gestão, deve ter um mandato conferido pelo empregador, ainda que verbal ou tácito, para administrar o empreendimento do empresário. Embora a atual norma mencione apenas “encargos de gestão”, é possível entender que a pessoa que tem encargo de gestão é a que tem mandato, ainda que verbal ou tácito.

 

 

2. EMPREGADOS EXCLUÍDOS

 

Certos empregados são excluídos da proteção normal da jornada de trabalho, como se verifica do artigo 62 da CLT. São os empregados que exercem atividade externa incompatível com a fixação do horário de trabalho e os gerentes, diretores ou chefes de departamento. Isso quer dizer que não têm direito a horas extras e a adicional de horas extras.

 

A antiga redação do artigo 62 da CLT incluía os vigias que tinham apenas jornada de 10 horas. A Lei nº 7.313, de 17.05.1985, suprimiu a alínea b do artigo 62 da CLT, renumerando as demais. Com isso, o vigia passou a ter jornada de trabalho de oito horas, tendo direito a horas extras, além desse horário.

 

 

3. CONSTITUCIONALIDADE

 

Poder-se-ia dizer que o artigo 62 da CLT seria inconstitucional, pois o inciso XIII do artigo 7º da Constituição estabelece que duração do trabalho do empregado é de oito horas diárias e 44 semanais.

 

Valdete Souto Severo afirma que o artigo 62 da CLT não foi recepcionado pela Constituição.[2]

 

Ivan Alemão assevera que o artigo 62 da CLT é inconstitucional, pois a Constituição garante a todos os empregados o limite da duração do trabalho. Não seria possível a CLT criar um excludente, sob o risco de discriminação dos empregados abrangidos pelo dispositivo consolidado.[3]

 

Jorge Souto Maior sustenta que “o inciso XV do art. 7º da CF/88, conferiu a todos os trabalhadores, indistintamente, o direito ao repouso semanal remunerado e, portanto, a pretendida exclusão contida no art. 62, II, neste aspecto mostra-se inconstitucional. Note-se, a propósito, que a própria Lei nº 605/49, que tratou do direito ao descanso semanal remunerado não excluiu de tal direito os altos empregados.

 

Ora, se têm direito ao descanso semanal remunerado, é porque o próprio ordenamento reconhece que o trabalho dos altos empregados deve ter limites. Além disso, utilizando-se a mesma linha de raciocínio, chegar-se-á, inevitavelmente, à conclusão de que o art. 62, II, da CLT, é inconstitucional, na medida em que o inciso XIII, do artigo 7º, conferiu a todos os trabalhadores, indistintamente, o direito à limitação da jornada de trabalho.

 

O artigo em questão, portanto, é inconstitucional...”.[4]

 

Lucas Serafini afirma que é inconstitucional o inciso II do artigo 62 da CLT por ofensa aos incisos XIII e XVI do artigo 7º da Constituição, por se atritar com o princípio da dignidade da pessoa humana e com o direito ao lazer.

 

O Enunciado 17, aprovado na 1ª Jornada de Direito Material e Processual promovida pelo TST e Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, realizada em 23 de novembro de 2007, entende inconstitucional o artigo 62 da CLT:

 

LIMITAÇÃO DA JORNADA. REPOUSO SEMANAL REMUNERADO. DIREITO CONSTITUCIONALMENTE ASSEGURADO A TODOS OS TRABALHADORES. INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 62 DA CLT.

A proteção jurídica ao limite da jornada de trabalho, consagrada nos incisos XIII e XV do art. 7º da Constituição da República, confere, respectivamente, a todos os trabalhadores, indistintamente, os direito ao repouso semanal remunerado e à limitação da jornada de trabalho, tendo-se por inconstitucional o art. 62 da CLT.

 

De um modo geral, há presunção de que as leis são constitucionais e estão de acordo com a previsão da Lei Maior.

 

O artigo 62 da CLT não foi expressamente revogado por outra norma. Logo, está em vigor.

 

Entretanto, o artigo 62 da CLT não está mencionando que o empregado deva trabalhar mais do que a jornada especificada na Constituição, apenas que aquelas pessoas que não têm controle de horário ou os gerentes, de modo geral, deixam de ter direito a horas extras, pois no primeiro caso é difícil dizer qual o horário em que prestam serviços, por trabalharem externamente, e no segundo caso o empregado faz o horário que quer, podendo entrar mais cedo e sair mais tarde, ou entrar mais tarde e sair mais cedo, a seu critério. Neste último caso, verifica-se que o poder de direção do empregador é muito menor, e em muitos casos é o empregado que determina muitas coisas, justamente por ter encargo de gestão. O empregado pode ser um substituto do empregador. Assim, não têm tais pessoas direito a horas extras e não é inconstitucional o artigo 62 da CLT.[5]

 

O inciso XIII do artigo 7º da Constituição permite a fixação de outras jornadas de trabalho.

 

Octavio Bueno Magano também entende que o inciso II do artigo 62 da CLT é constitucional.[6]

 

Homero Batista Mateus da Silva alega que “o entendimento em prol da não recepção do art. 62 da Constituição Federal de 1988 se mostra um tanto exagerado”.[7] Entende que tal dispositivo foi recepcionado pela Constituição de 1988.[8]

 

O inciso II do artigo 62 da CLT não é inconstitucional por violar o princípio da igualdade, porque não há controle de horário. O gerente pode entrar e sair a hora que quer, sem controle de horário. Se houver controle de horário, tem direito a horas extras.

 

Não se pode falar em retrocesso social com a Lei nº 8.966/94, pois a redação anterior do artigo 62 da CLT também excluía o direito a horas extras em relação a gerentes.

 

Não está o inciso II do artigo 62 da CLT retirando do empregado o direito à vida.

 

A dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição) não está sendo violada. Pode-se dizer que não é indigno a pessoa trabalhar. Ofender  a dignidade do trabalhador é ofender a sua pessoa. O inciso II do artigo 62 da CLT não está ofendendo a dignidade do trabalhador, violando o respeito que ele merece, violando sua honra, respeitabilidade ou a sua nobreza.

 

No TST, há julgados entendendo que não há inconstitucionalidade do artigo 62 da CLT:

 

HORAS EXTRAS. GERENTE. RECEPÇÃO DO ART. 62 DA CLT PELA ATUAL CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O art. 7º, inciso XIII, da Constituição Federal veicula norma genérica, referindo-se apenas a relações de emprego sujeitas a controle de horário. Desse modo, mantém-se a possibilidade de a legislação infraconstitucional estabelecer normas específicas para o atendimento a situações diferenciadas, quando as circunstâncias do trabalho não permitem o controle da jornada, como é o caso do gerente a que se refere o art. 62 da CLT, que, assim, foi recepcionado pela atual Carta Política. Recurso de revista conhecido e desprovido. (TST, 5ª T, RR 620959-23.2000.5.15.5555, j. 01.10.2003, Rel. Min. Ríder de Brito, DJ 24.10.2003).

 

“INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 62, II, DA CLT. VIA DE EXCEÇÃO OU DEFESA. INOCORRÊNCIA. O art. 62, II, da CLT não obriga os gerentes a extrapolarem a jornada diária declinada pelo inciso XIII do art. 7º constitucional, mas apenas lhes retira o direito de receber horas extras, já que, acometidos de encargos de gestão, podem determinar seu próprio horário, não se submetendo ao poder diretivo           do Empregador. De outra parte, a Lei Fundamental trata apenas genericamente da jornada de trabalho, não impedindo a legislação infraconstitucional federal de regulamentar especificamente o tema (CF, 22, I). Não há que se cogitar, portanto, da inconstitucionalidade do citado preceito consolidado, recepcionado em forma e conteúdo pela atual Constituição” (TST, 2ª T, RR 400267/1997, j. 22.11.2000, juiz convocado Márcio Ribeiro do Vale, DJ 07.12.2000).

 

O STF também entendeu que o artigo 62 da CLT é constitucional:

 

RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Cargo de gestão. Ausência de controle da jornada de trabalho. Possibilidade. Art. 62, II, da CLT. Decisão mantida. Agravo regimental improvido. Não afronta o art. 7º, XIII, da Constituição da República, a decisão que excepciona os ocupantes de cargos de gestão do controle de jornada de trabalho (RE 563.851-AgR/RS, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 26.02.2008, DJE 28.03.2008).

 

O pagamento da gratificação pelo exercício da função, nos termos do parágrafo único do artigo 62 da CLT, pode ter por objetivo compensar a   maior responsabilidade pelo cargo exercido, como também cobrir despesas decorrentes de seu desempenho, mas pode-se também entender que a gratificação paga pela maior responsabilidade já inclui eventual remuneração de horas extras que possam ser prestadas.

 

 

4. PORTUGAL

 

Reza o artigo 218 do Código de Trabalho português que as pessoas que exercem cargo de administração ou direção, ou de funções de confiança, fiscalização ou apoio a titular desses cargos, desde que, por acordo escrito, ficam isentos de horário de trabalho. São os chamados empregados em comissão de serviço.

 

Pedro Romano Martinez leciona que o empregado não está subordinado ao horário de trabalho na empresa, mas tem direito a pagamento de uma retribuição especial (art. 256 do Código de Trabalho).[9] A isenção de horário de trabalho permite que o trabalhador não se sujeite, total ou parcialmente, ao horário de trabalho. Ela se refere à ausência de horas predeterminadas para início e término da jornada de trabalho. Os empregados em comissão não devem trabalhar ininterruptamente, nem devem ter horas predeterminadas para início, descanso e termo do trabalho.[10] Não estão subordinados a horário de trabalho.

 

 

CONCLUSÃO

O artigo 62 da CLT está de acordo com a Constituição, tanto que já foi declarada a sua constitucionalidade por turmas do TST e pelo STF.

 


[1] MARTINS, Sergio Pinto. Comentários à CLT. 19. ed., São Paulo: Saraiva, 2015, p. 107.

 

[2] SEVERO, Valdete Souto. A Constituição Federal e a lente invertida de quem aplica o Direito do Trabalho. Anamatra, p. 1-16, p. 6.

 

[3] ALEMÃO, Ivan. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2004, p. 190.

 

[4] MAIOR, Jorge Luiz Souto. Do Direito à Desconexão do Trabalho. Revista do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social. São Paulo, v. 1, nº 1, p. 91-115, jan./jun. 2006, p. 100.

 

[5] MARTINS, Sergio Pinto. Direito do Trabalho. 32. ed., São Paulo: Saraiva, 2016, p. 764.

 

[6] MAGANO, Octavio Bueno. Trabalho Extraordinário após a CF de 1988. Revista de Direito do Trabalho. São Paulo, nº 84, p. 27-30, dez. 1993, p. 28.

 

[7] SILVA, Homero Batista Mateus da. Curso de Direito do Trabalho Aplicado: jornadas e pausas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, v. 2, p. 97.

 

[8] SILVA, Homero Batista Mateus da. Curso de Direito do Trabalho Aplicado: jornadas e pausas. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, v. 2, p. 91.

 

[9] MARTINEZ, Pedro Romano. Direito do Trabalho, 5. ed., Lisboa: Almedina, 2010, p. 573.

 

[10] MARTINEZ, Pedro Romano. Direito do Trabalho, p. 574.

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Abril/2016